PARAÍBA

Açude à morte: Boqueirão chega a 8% e pode marcar colapso de água em CG

O açude Epitácio Pessoa, em Boqueirão, está à beira do colapso, no final deste mês de julho, chega em julho de 2016 a marca dos 8% de sua capacidade total. Localizado no cariri paraibano, o açude é considerado um dos mais importantes reservatórios do Estado, responsável por abastecer 19 cidades, entre elas a segunda maior do estado, Campina Grande. O açude abastece uma população de cerca de 700 mil habitantes. Vale ressaltar que os campinenses já vêm sofrendo com o racionamento de água desde dezembro de 2014.


Segundo informações do professor do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Campina Grande, Janiro Costa Rego, membro do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, é pouco provável que o açude Epitácio Pessoa receba recarga de água até o final do ano. “A situação do que resta do Açude Epitácio Pessoa (chamado também de Boqueirão) tende a se agravar. Quando chegar os meses mais quentes e secos do segundo semestre as perdas serão maiores, o que deve provocar aumento no racionamento”, afirma. Janiro ainda explica que a tendência também é que a água que resta vá se deteriorando e perdendo qualidade, física, química e biológica, levando a sair dos padrões recomendados pelo Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde. “Já temos noticias de que em alguns parâmetros, como concentração de sais, ela já ultrapassa os limites da norma. Então já se bebe água em condições precárias e a qualidade vai piorando mais ainda. Há um risco grande que essa água se degenere ao ponto da estação de tratamento, que faz a potabilização da água para ser distribuída em Campina Grande, não conseguir potabilizá-la”. A esperança do técnico é que as obras da transposição mantenham o ritmo e sejam inauguradas antes de dezembro. Mas cada vez mais isso parece menos provável de resolver a situação de Campina.


Confira abaixo belo texto de Ligia Coeli, com fotos de Kalina Aires Soares. As duas visitaram o açude e registraram a atual situação do manancial e da população de Boqueirão.

Um açude à morte

Por Ligia Coeli
Fotos: Kalina Aires Soares

Era uma manhã de domingo e o cenário se assemelhava ao de um assassinato que comove as pequenas cidades. Muita gente ao redor do corpo, o cadáver ressecado ao sol, o sangue coalhado fazendo poça na rua, olhares incrédulos. Assim era a sensação de quem se aproximava para ver a situação do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão – mesmo nome do município que fica localizado na região do Cariri da Paraíba. O lugar que abriga pouco mais de 18 mil habitantes guarda também um dos mais importantes reservatórios do Estado, responsável por abastecer 19 cidades.


Mas àquela altura, quem fincava os pés no que chamam de ‘balde’ do açude só conseguiria ver um morto com boias em suas veias frágeis, equipamentos sugando o resto de sangue que lhe restava. O atual sistema de captação foi uma alternativa para não estancar de vez a distribuição no abastecimento. Em julho de 2016 Boqueirão alcançou a lamentável marca dos 8% de sua capacidade total, resultando em sistema de racionamento nas cidades que dependiam diretamente dele. Para registrar as imagens que ilustram essa reportagem, fizemos um longo percurso que – na época de cheia – seria impossível fazê-lo a pé. Caminhávamos esmagando conchas e fincando o pé onde deveria ter água. Muita! Mais precisamente 18 metros acima de nossas cabeças. Mas naquele dia só existia planta queimada de sol, capim e lama que engolia nossos tênis velhos.

O restaurante “Margem das Águas”, além da clientela, também perdeu o sentido da alcunha. Não há água para morar ali, a margem foi pra longe. O lugar que costumava ficar cheio já a partir das 7h da manhã, agora mais parece uma festa que está chegando ao final. Quando chegamos o garçom ajeitava as mesas com um olhar perdido que nos comoveu. “A essa hora eu não deveria nem estar arrumando as cadeiras, já nem havia mais canto pra o povo sentar”, diz ele enquanto checa no relógio: era 9h e apenas um casal chegava acompanhado de duas crianças. Fez questão de se encostar na sacada do restaurante e dizer que era dali onde ele e os funcionários pulavam direto para dentro do açude. “Quando dava cinco da tarde a gente fechava o bar e ficava aqui. Pulava daqui mesmo”, diz enquanto olha a distância que a água está dos nossos olhos.

 

Saindo dali e caminhando em direção a um cemitério de barcos encontramos o pescador Paulo Sérgio Firmino da Silva, de 34 anos. Pintava a sua canoa e fingiu não perceber a nossa presença até que explicamos o motivo da nossa aproximação. Não parou um minuto a sua atividade e enquanto a canoa ficava preta de tinta ele contava que tucunaré, traíra e tilápia eram os peixes mais encontrados por ali. “Na época boa a gente tirava até cinquenta quilos pescando de rede. Hoje se tirar dez é muito, não tá dando nada”, diz, enquanto está de cócoras deslizando o pincel. “É tão pouco que o povo agora tá pescando de anzol”, finaliza como quem não quer falar muito.

 


Pesca de anzol é mau sinal para quem vive de tecer redes. É o caso de José Marques do Nascimento. Na vila de pescadores atende apenas como “Deca”. Aos 55 anos, diz com fala rápida que “não tá dando peixe e o povo fica desgostoso”. Deu para perceber que ele fica desgostoso também. Uma única rede pode levar até um mês para ser tecida por completo e vendida por R$ 60,00. Sem água e sem peixe, a atividade que era considerada tradicional na vila de pescadores passa a perder o sentido. E seu Deca se perde um pouco também. “Não tem gente nem pra pedir conserto de rede. Dependendo da empreitada eu cobrava dez reais, mas agora que o açude tá baixo, tem pouco consumo”, diz. Sem peixe para arrebentar as redes, ele não vende e elas se amontoam em um dos quartos da casa.


Amontoado também de embarcações. Além das canoas que são engolidas por mato na beira do açude, é possível ver como a seca engoliu a movimentação na única marina existente na cidade. O empreendimento conhecido como “Biu da Lancha” é do comerciante Severino Xavier da Silva, de 52 anos. Ao todo são mais de cinquenta lanchas e jet-skis parados no galpão, acumulando poeira e esquecidos pelos donos. “Antes, quando era fim de semana a gente botava 20 embarcações na água, hoje, se a gente colocar três é muito”, diz. Só em precisar reconstruir o píer para dar passagem às lanchas, muitos moradores simplesmente desistem.


O desânimo deu à cidade uma aparência fantasmagórica. A última vez que os moradores viram o açude sangrar – atingir a capacidade máxima – foi em 2011. O “carnaval molhado” era uma das atrações turísticas da cidade, salva-vidas eram providenciados para atucalhar quem usava lanchas e mergulhava açude adentro. De vários pontos da cidade era possível enxergar a imensidão de água, por isso o estranhamento de Aliete Pinto ao sentar na varanda e ver só terra. Dona de um restaurante, ela conta que nem gosta de olhar tanto em direção ao açude. “Faz cinco anos que eu guardei a minha bomba d’água”, diz ela como quem comenta uma briga perdida. A mulher que mora há poucos metros de Boqueirão depende hoje de um carro pipa para abastecer a cisterna. A água chega quinzenalmente em um caminhão que levanta poeira pela estrada. “Tem domingo aqui que eu só vendo oito almoços, o movimento caiu demais”, diz ela encarando duramente o açude, como quem enxerga ali um velho amigo que a magoou e fugiu carregando consigo um pedaço de sua autonomia e história.


E esse olhar ressentido parecia se espalhar como doença entre os outros moradores, que já arredios, por causa da presença constante de jornalistas por aquelas bandas, já não queriam dar notícias do morto. Cansados de descrever como foi o crime, eles só queriam saber agora o dia do enterro para velar o defunto em paz.

Confira mais fotos 

 

 

Revista Nordeste


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