NORDESTE

Diretores de “Bacurau” condenam ataques ao Nordeste

“Kleber Mendonça Filho, pernambucano, nordestino”. Foi assim que um dos diretores do filme “Bacurau” se apresentou para a plateia que lotou três salas de cinemas em Teresina no último dia 31. Kleber Mendonça e Juliano Dornelles conversaram com o público por mais de uma hora, condenaram os ataques ao Nordeste e a ameaça de censura, e garantiram que o filme trata sobre “compaixão e respeito”.

Premiado internacionalmente, “Bacurau” já faturou o prêmio do Júri no Festival de Cannes e foi escolhido como Melhor Filme na principal mostra do Festival de Cinema de Munique, na Alemanha. O  longa conquistou outros três prêmios no 23º Festival de Cine de Lima, no Peru: Melhor Filme, Melhor Direção  e Prêmio da Crítica Internacional.

Coescrito e codirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme conta a história do misterioso sumiço do povoado de Bacurau. Com isso, seus moradores começam a presenciar estranhos acontecimentos e uma série de inexplicáveis assassinatos.

Ataques ao Nordeste

“Eu sou do Nordeste, sou pernambucano e é muito triste que a gente esteja vendo a volta de um discurso que eu achei que estava enterrado, que essa coisa de diminuir o Nordeste, de separar o Nordeste, e aí fizemos esse filme que na verdade fala sobre isso. Só que a gente fez anos atrás (escrito há cerca de 10 anos), pensando num filme do futuro, de ficção científica e hoje se vive uma realidade que é parecida com a do filme e as pessoas estão reagindo a isso muito visceral e muito forte. Eu não sei muito o que dizer, a não ser observar como artista, como esse filme está interagindo com as pessoas e eu fico muito espantando que a gente tenha voltado para esse estágio de subdesenvolvimento do Brasil”.

Respeito

“É um filme que fala sobre as pessoas que exigem respeito, elas não serão desrespeitadas. Acho que é uma mensagem importante hoje no Brasil”.

Oscar

“Não incomoda de jeito nenhum Bacurau não estar no Oscar. Bacurau tem vendas, praticamente, em todos os territórios internacionais. A carreira dele é gigante fora do Brasil e o filme que foi escolhido “A vida invisível” é dirigido por um grande cineasta brasileiro que é Karim Aïnouz e ele vai representar bem o Brasil. Bacurau com Oscar ou sem Oscar tem uma vida independente pelo mundo. Será exibido em Toronto, França, Nova York, Londres, China, Israel, Grécia, Botogá, Estocolmo e por aí vai”.

Sônia Braga no filme Bacurau/ foto: divulgação

Nordeste

“Acho que nós do Nordeste, somos cientes de um campo de força que existe do ponto de vista cultural, político, social, histórico, que infelizmente separa o Nordeste do chamado resto do Brasil. Isso é triste. É um tema que abordamos no filme e que discutimos muito, e chegamos a conclusão de que era justo abordar isso. Nós, do Nordeste, temos uma compreensão talvez um pouco mais aguçada das diferenças estruturais que existem na sociedade brasileira. Que fique claro, que nem eu e nem Juliano, por sorte ou por acaso, poderíamos ser separatistas. Nós não somos. A gente acredita num Brasil inteiro, do jeito que ele pode ser, e acreditamos em uma maneira de quebrar essa separação, que está no ar e sei que ela existe. Já senti em mim como cidadão de Pernambuco, viajando a trabalho, na relação com o Sudeste e com o Sul. A melhor maneira de diminuir essas diferenças é com educação e cultura. É muito triste o que a gente vê em 2019, voltando a ouvir umas coisas que nós brasileiros começamos a perceber na reeleição de Dilma Rousseff, em 2014. Voltou a ter um discurso de ódio com relação ao Nordeste por causa do resultado da eleição em que ela foi reeleita”.

Cangaço

Juliano Dornelles informou que a ideia do cangaço sempre esteve presente de forma geral, muito mais como um sentimento. Revelou que uma das consultas que fez foi à obra de Frederico Pernambuco de Melo “Guerreiros do Sol”. A música de Geraldo Vandré “Réquiem para Matraga” foi incluída na trilha sonora por ser uma letra muito forte. “É uma música de lamento e que apareceu no período de montagem e encaixou quase que magicamente”.

Ouça a música

Kleber Mendonça

“Desde o início de nossos roteiros, os nossos personagens principais, eles geralmente não são personagens principais. Partiu a ideia de fazer um filme com pessoas incríveis que em outro tipo de filme são apresentados como pessoas simples e pra gente não são pessoas simples, são brasileiros como todos os outros: complexos, interessantes. Traz questão de Brasil e de mundo sobre poder econômico que muitas vezes fazem algumas  pessoas se colocarem a cima de outro e aí eles quebram a cara. O Brasil é múltiplo, diverso e todos são brasileiros, iguais perante a nação e a democracia. Me parece equivocado que, por questão de mercado ou econômica, um grupo se coloque acima de outros grupos”.

Violência

Juliano Dornelles

“Acho que toda violência que está no filme vem acompanhada de muito peso, muita tristeza, acho que quando tem violência tem compaixão. E acho que é um filme sobre compaixão e respeito, mas o Brasil é um país violento e, às vezes, a violência vira assunto e nesse filme é assunto”.

Sementes

Kleber Mendonça

“Eu não conheço a composição química das sementes, mas ela é um tipo de fortificante contra o medo e a favor da força humana”.

Foto: Yala Sena

Educação

Kleber Mendonça

“Eu não acredito que o cinema possa mudar o mundo, mas acredito que é uma ferramenta poderosíssima para educar e trazer compreensão, conhecimento, discussão. Isso é fato, não é opinião. Filmes acompanhados de ideias e de uma apresentação e com liberdade total para serem discutidos, eles podem ser muito, muito fortes para a educação”.

Juliano Dornelles

“Tem que se manter firmes nas convicções e continuar trabalhando para que não se perca nossos direitos adquiridos de poder fazer e se expressar e não ser censurado. Não podemos deixar que a censura se instale, mas é algo difícil de prever”.

Poder de desaparecer

Kleber Mendonça

“Pra mim eu pensei muito na questão do poder. O poder tem a capacidade administrativa, burocrática, tecnológica, bélica, de fazer coisas desaparecerem… Bacurau é um poder de tecnologia e de burocracia. Quando o Michael fala: ‘eu tenho documentos e provo que nós não estamos aqui’, é o poder que ele está usando, cinicamente, pra se livrar de qualquer responsabilidade… Em março, estávamos trabalhando a parte final do filme, antes de ir para França, e o governo atual apagou dos mapas áreas indígenas de demarcação. Se você quiser, você tem como não estar, você tem como não ver algo que estar lá. Quando Bacurau é apagada do mapa não significa que Bacurau não estar mais lá, eles estão lá, eles não estão mais oficialmente no mapa, que é uma questão filosófica interessante… Isso foi trabalho no filme, estar lá, ser, e não ser respeitado. Na verdade, a comunidade exige respeito. É aí que ela passa a existir e isso explica a reação muito forte que o filme tem tido em plateia no mundo inteiro, mas agora muito forte no Brasil e ainda mais forte no Nordeste”.

Juliano Dornelles

Essas pessoas têm nomes e sobrenome. Elas existem. A gente se acostumou durante muito tempo, enfim, eu já ouvi muito, ‘seu Zezinho”, “seu Matutinho”, ninguém se interessa em saber quem são. O poder faz isso e não é exclusividade do Brasil. O poder deixa a pessoa desinteressada pelo outro”.

Foto divulgação

Simbolismo da água

Juliano Dornelles

“Uma coisa bem objetiva, a água é essencial. A vida e o sertanejo sofre com a falta dela. É histórico. Agora tem uma transposição que leva água para vários lugares, no início do filme a gente mostra uma ação, uma espécie de poder, que a gente não sabe direito, que simplesmente interrompe a chegada da água na localidade. Isso é mais um dos artifícios que esse poder usa pra sufocar aquela região”.

Kleber Mendonça

“A falta de água é um problema no Nordeste. É uma falta de interesse, é um descaso. Creio que houve melhorias… é um tema que queríamos abordar agora, que é absolutamente histórico na nossa região. Problema crônico”.

Foto: divulgação

Substâncias psicotrópicas

Juliano Dornelles

“Tem coisas no filme que a gente gosta de deixar para interpretações. Essas sementinhas, não sei se leram a história em quadrinho Asterix, lá eles têm um druida que prepara uma porção mágica e deixa os gauleses mais fortes para enfrentar os romanos. Pode ser isso, mas pode ser outra coisa”.

Censura

Kleber Mendonça

“Não vou discutir censura, porque ela não existe, segundo a Constituição Federal de 1988. Eu não entendo porque o presidente está falando sobre isso. Eu vou continuar fazendo o que eu quero fazer sem nenhuma restrição, porque não existe censura. Não é possível andar de avião e fumar dentro de um avião, isso é uma lei federal, então a gente não vai discutir fumar em avião porque não pode fumar em avião. Isso é uma lei federal. A mesma forma é a censura. Não tem censura. Eu acho que o presidente está desinformado, alguém precisa falar pra ele que está na Constituição. Eu como artista vou continuar fazendo exatamente o que quero fazer, dentro do que quero fazer”.


Por Yala Sena
Cidadeverde.com

 

 


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