CEARÁ

Especialistas apontam por que o Ceará é um dos estados mais violentos para LGBTs

Representantes da comunidade, pesquisadores e membros de defesa dos direitos humanos elencam seis principais problemas.

 

O levantamento realizado pelo G1 aponta que o número de homicídios de pessoas LGBT no Ceará é o maior já observado no estado. Os dados de anos anteriores dos quais se tem notícia são contabilizados por organizações sociais – como o Grupo Gay da Bahia (GGB) – e nunca apontaram índices tão altos.

 

Para se ter uma ideia do aumento, dados do GGB apontam que houve 20 homicídios de pessoas da comunidade em 2019 e 23 em 2018. Já em 2017, o grupo conseguiu contabilizar 30 assassinatos, dos quais um deles foi o da travesti Dandara dos Santos, morta brutalmente nas ruas da periferia de Fortaleza. O seu assassinato foi filmado, compartilhado nas redes sociais e ganhou repercussão mundial.

 

Representantes da comunidade LGBT, pesquisadores e membros de defesa dos direitos humanos acreditam que os crimes são provenientes de um sistema repleto de falhas e estão imersos em seis principais problemas:

  1. Reconhecimento da LGBTfobia pelo Estado;
  2. Ausência de políticas públicas de segurança para LGBTs;
  3. Maior número de denúncias;
  4. Vulnerabilidade social da comunidade;
  5. Contexto nacional;
  6. Ausência de estratégias municipais.

 

1. Reconhecimento da LGBTfobia pelo Estado

Integrantes da sociedade civil que formam o movimento LGBT cearense afirmam que os poderes federal, estadual e municipais não reconhecem o problema da LGBTfobia e os crimes que motivam integrantes da comunidade. Dario Bezerra, representante do Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), considera que o Ceará seja um estado negacionista nesse aspecto.

 

“Apesar de a gente ter dados que não são oficiais, mas que apontam que o Ceará é o segundo que mais mata LGBTs, a gente tem um estado que nega isso. Não existe nenhuma fala do estado de reconhecimento disso”, considera.

Dediane Souza, do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, considera que é urgente o reconhecimento do extermínio dessa população no Ceará. “Nosso compromisso é de denunciar todos os dias que existe um número crescente de homicídios de LGBTs e que sequer o estado consegue quantificar esses números. Existe uma negação e, para gente promover cidadania, a gente precisa reconhecer”, avalia.

 

2. Políticas públicas de segurança

 

Na avaliação de representações da comunidade, há problemas estruturais nas políticas de segurança pública implementadas no Ceará e voltadas a grupos mais vulnerabilizados, como os LGBTs. A ausência dessas ações, por exemplo, teria como resultado o aumento de homicídios desse segmento. São citados os seguintes problemas na área:

 

  • Ausência de dados de crimes que vitimam pessoas LGBT, especialmente homicídios;
  • Ausência de plano de segurança para pessoas vulneráveis;
  • Ausência de uma delegacia especializada em crimes raciais e de intolerância;
  • Ausência de protocolo para crimes contra LGBTs;
  • Problemas na formação policial.

 

Na visão da presidente da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Andrea Rossati, a maior demanda do movimento atualmente é a criação de uma delegacia que atue especificamente em casos de cunho racial e intolerância. “Precisamos de uma delegada, um delegado que tenha pulso sobre crimes correlatos a homofobia e transfobia. Não dá para esses casos ficarem sendo jogados para um, para outro. Tem que ter uma delegacia especializada, que faça um trabalho específico para diminuição e erradicação dessas violências”, afirma.

 

A socióloga Ana Letícia Lins, da Rede de Observatórios da Segurança, considera que essa é, de fato, a maior demanda, contudo pondera que ela não é suficiente, pois as demais delegacias de polícia precisam saber lidar com crimes de intolerância e ódio. “A gente precisa que a Secretaria da Segurança se comprometa de melhor formação para os policiais no tema da LGBTfobia e também do racismo, para que eles consigam atender todas essas demandas”, completa a pesquisadora.

 

A SSPDS informou, em nota, que trabalha para implantar uma comissão que será formada por delegadas do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis (DPGV). A proposta é acompanhar e auxiliar as investigações de crimes contra vítimas LGBTs, bem como identificar motivações relacionadas ao preconceito.

Segundo a Secretaria, foi criada uma comissão com representantes do estado e da Defensoria Pública a fim de aprimorar o Sistema de Informações Policiais (SIP), com mudanças nos campos de preenchimento, e adoção de protocolos de atendimento.

 

Além disso, também são pontuadas como ações a formação de profissionais da segurança em seminários temáticos, disciplinas específicas e capacitações continuadas voltadas ao atendimento desta população. “A SSPDS Ceará ressalta ainda que mantém o compromisso de prestar atendimento adequado e a devida proteção de todos os grupos vulneráveis, por meio de políticas públicas que assegurem direitos e garantias fundamentais”, disse.

A Secretaria também pontuou que representantes do movimento LGBT passaram a compor os Conselhos Comunitários de Defesa Social (CCDS), vinculados à SSPDS. A Secretaria elencou que travestis e mulheres transexuais podem denunciar casos de violência doméstica e familiar nas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) e ter seu nome social colocado em boletins de ocorrência desde 2017. Por fim, os campos de orientação sexual e identidade de gênero foram acrescentados à plataforma SIP3W (Sistema de Informações Policiais), nas delegacias de polícia.

 

3. Maior número de denúncias

 

Dediane avalia que os números são maiores também por causa do aumento nas denúncias, já que os movimentos sociais estão mais atentos aos crimes que vitimam LGBTs.

 

“Eu acredito que seja a soma de duas coisas: a denúncia que a gente vem potencializando, a gente vem esquematizando estratégias de contabilizar esses dados, e a utilização das redes sociais para denunciar essas questões, elas têm um papel fundamental nesse campo”, entende a coordenadora.

4. Vulnerabilidade social da comunidade

 

Para Dario Bezerra, o assassinato é a forma mais cruel da LGBTfobia e o resultado de uma série de negativas e restrições impostas à comunidade, as quais demonstram a vulnerabilidade social decorrente da ausência do estado e promovida pela sociedade como um todo. “O que existem são ações pontuais, de valorização de eventos das populações LGBTI+, mas não são políticas públicas porque elas só são concretizadas quando transformam socialmente, economicamente, quando dão oportunidade de acesso, de mercado de trabalho, educação. Aqui a gente não tem”.

 

Além disso, conforme Ana Letícia Lins, há uma exposição extrema de integrantes da comunidade em função dessa vulnerabilidade, especialmente de travestis e transexuais.

 

“Elas estão ocupando lugares na sociedade de muita precariedade, então, mesmo num cenário de crise sanitária e econômica, onde há uma série de dimensões com impactos sociorraciais muito grandes, elas estão ocupando lugar ainda mais precário. Estão expostas a todo tipo de violência”, indica.

 

5. Contexto nacional

De acordo com a defensora pública Mariana Lobo, não houve grande avanço nas políticas públicas de defesa e prevenção de crimes contra a população LGBT. Para ela, há “uma lacuna muito grande na política pública em nível nacional”, especialmente desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Essa lacuna interfere diretamente na ausência de políticas públicas nos estados e municípios.

 

Por outro lado, ela considera que o Poder Judiciário tem feito sua parte, uma vez que, quando é questionado, atua reiterando direitos dessa população. A defensora cita, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou o crime de LGBTfobia ao racismo. A decisão foi tomada pelo plenário em razão da ineficiência do poder legislativo.

 

Na visão de Andrea Rossati, da Atrac, essa decisão do STF ampara e fortalece a comunidade, mas há uma série de outras necessidades que ficam apagadas em razão de uma “onda de ódio” que assola o Brasil, em especial grupos minoritários.

 

“Nós temos um desgoverno que a todo momento incita o ódio, a violência, a falta de respeito e o desamor. Infelizmente, parece que essas pessoas transfóbicas, homofóbicas estão com essa coragem de colocar os seus preconceitos, seus ódios aflorados para fora”, afirma.

 

6. Ausência de estratégias municipais

Andrea ainda considera que embora haja responsabilidade a nível estadual e federal, os municípios, especialmente do interior do estado, também precisam efetivar políticas de prevenção a fim de reduzir os índices de crimes contra a população LGBT. Para ela, faltam campanhas de conscientização e um observatório que possa monitorar essas violações e dar assistência às vítimas.

 

Em Fortaleza, o poder municipal disponibiliza o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, que atua no combate às violências e violações de direitos humanos da comunidade. Em 2020, porém, além da capital, que registrou o maior número de homicídios do estado, outras 23 cidades contabilizaram pelo menos um assassinato contra essa população.

 

Os dois municípios, além da capital, que apresentaram maior número de homicídios de LGBTs estão na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Caucaia registrou seis assassinatos nesta população, e Aquiraz, cinco. Ambas as prefeituras foram questionadas pela reportagem no último dia 4 de maio. O G1 perguntou quais medidas de prevenção a mortes violentas de integrantes da comunidade foram tomadas pelos poderes municipais. Nem Caucaia, nem Aquiraz responderam.

 

 

Por Cadu Freitas, G1 CE

 


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