CEARÁ

Guerra nas periferias de Fortaleza expulsa moradores

A população da Grande Fortaleza viveu um final de semana de terror. Desde sábado, ônibus foram incendiados, um pátio com 50 carros foi atacado e até a própria Secretaria de Justiça (Sejus) do Estado acabou alvejada por tiros. O conjunto de ações é o retrato de uma cidade sitiada, onde facções, em disputa pelo controle do tráfico, têm promovido assassinatos, expulsado moradores de casa, proibido a circulação em algumas áreas e até obrigado crianças a mudarem de escola. Uma situação que se arrasta desde o ano passado, mas que ganhou contornos ainda mais graves neste ano.

“É possível dizer que as facções estão em guerra entre si”, reconhece o secretário da Segurança Pública e Cidadania, André Costa. Um dos Estados do Nordeste mais estratégicos para a rota internacional de tráfico, devido a maior proximidade com África e Europa e a melhor estrutura de portos e aeroportos, o Ceará entrou no radar das organizações criminosas desde o final da década de 90. Atuam em território cearense a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), a carioca Comando Vermelho (CV), a amazonense Família do Norte (FDN) e a Guardiões do Estado (GDE), criada localmente e que hoje domina a maior parte de Fortaleza.

A consequência desta guerra se expressa nas estatísticas. A quantidade de homicídios no Estado aumentou 50,7% de 2016 para 2017, quando 5.133 pessoas foram assassinadas. Com uma taxa de 83,48 homicídios por 100.000 habitantes, Fortaleza se tornou no ano passado a sétima região metropolitana mais violenta do mundo, segundo um ranking da ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, divulgado no início deste mês. E os dados deste início de 2018 sinalizam para uma piora no cenário. Nos dois primeiros meses deste ano foram assassinadas em todo Ceará 844 pessoas, número 36% maior do que o dos dois primeiros meses de 2017 (618). Na Grande Fortaleza, houve 51% mais mortes. E, entre as mulheres, o número de mortes saltou quase 300%neste ano, também como consequência da participação delas na linha de frente das facções.

O fim da paz

Em 2016, com as duas principais facções (PCC e CV) em acordo no país todo, a capital cearense vivia um período que acabou conhecido como a pacificação das periferias. E a paz entre elas fez com que o número de homicídios despencasse. Mas a discordância entre PCC e CV pelo controle das fronteiras, no final de 2016, fez com que a gangorra das estatísticas pesasse para o outro lado. No Estado, a GDE se alinhou ao PCC. E a FDN, ao CV. Na linha de frente, membros de cada grupo passaram a se matar.

Apenas neste ano, quatro chacinas ocorreram na capital cearense. A primeira delas, em janeiro, na casa noturna Forró do Gago, localizada em uma área dominada pelo Comando Vermelho, onde morreram 14 pessoas, apenas três com passagem pela polícia e muitas mulheres e trabalhadores que vendiam comida na porta da festa. A última no bairro do Benfica, frequentado por um público universitário de classe média e onde há uma pista de skate usada por crianças e adolescentes. Sete pessoas foram mortas.

Além disso, também foram executados de maneira teatral membros importantes das facções no Estado. Petrus William Brandão Freire, de 21 anos, apontado como um dos chefes da FDN, foi morto com mais de 40 tiros numa madrugada do final de janeiro, ao sair de uma festa na praia do Futuro, uma área nobre de Fortaleza. Em meados de fevereiro, dois membros da cúpula do PCC, Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, também foram encontrados mortos em uma área indígena do Estado, onde a aeronave privada em que eles viajavam desceu.

O poder das facções no Estado se tornou tão grande que deputados decidiram arquivar, no último dia 13, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigaria o crime organizado no Ceará, com medo de sofrerem retaliações. Neste final de semana, o próprio prédio da Secretaria de Justiça foi alvo de disparos, em protesto ao plano de se instalar bloqueadores de sinal de telefonia celular nos presídios. Entre sábado e a madrugada de domingo, cinco ônibus e duas antenas de telefonia foram incendiados em Fortaleza. Os criminosos também colocaram fogo no pátio de um prédio da prefeitura de Cascavel, na região metropolitana, queimando mais de 50 veículos. Jogaram ainda bombas em outros dois prédios públicos. Até o momento, seis pessoas foram presas e três, mortas pela polícia. A secretaria afirmou que o policiamento no Estado foi reforçado.

“As facções passaram a reger a vida da sociedade”, resumiu o sargento Reginauro Sousa, presidente da Associação dos Profissionais de Segurança (APS) do Estado. E, com isso, a vida de moradores que nada têm a ver com a disputa foi modificada. “Agora às 18h já entramos para casa e fechamos tudo. Antes disso acontecer, a gente ficava na rua até 23h, fazia churrasco. Já botei a casa para vender duas vezes, mas nunca apareceu ninguém nem perguntando o preço”, conta um morador da rua onde antes funcionava o Forró do Gago.

As expulsões

No terceiro dia de janeiro, moradores da rua Unidos Venceremos, na periferia de Fortaleza, acordaram, saíram de suas casas e deram de cara com frases pichadas nos muros: “É pra sair fora hoje se não vai morrer. Nóis vai toca fogo em tudo (sic)”. O recado, que partia da facção criminosa GDE, causou pânico na vizinhança e alguns moradores foram embora. A PM montou uma base fixa e apagou as pichações, substituindo-as por 190, seu número de telefone.

Mas em outras áreas da capital cearense, a polícia não chegou a tempo e os moradores tiveram de deixar suas casas. No conjunto Palmeiras, considerado o berço da GDE, há ao menos cinco casas vazias na rua Cantinho Verde. Uma delas, um sobrado com o piso e as paredes revestidos de cerâmica e uma enorme varanda com vista para toda Fortaleza. Largada às pressas pelos donos, a casa está tomada pela sujeira. Ficaram para trás um rack, uma Bíblia, uma conta de luz de 2015 e um enfeite de Natal pendurado em uma das portas. Nenhum dos vizinhos que restou quis falar com a reportagem ou explicar o que havia acontecido por ali.

Namorada de um policial, Joana (nome fictício), de 23 anos, foi expulsa de sua casa em outra região periférica. Traficantes locais acreditavam que sua família havia passado informações para a polícia que ajudaram a desmantelar um ringue de briga de galos que pertencia aos criminosos. O apartamento era em um conjunto habitacional e pertencia à família. “Era 1h. Eu dormia no quarto com o meu irmão quando escutamos tiros e alguém gritou: ‘Sai fora, caguete!'”, conta ela, que chora ao lembrar que três disparos atingiram o armário do quarto. “Chamamos um policial e logo veio uma viatura que nos tirou de lá. Nunca mais voltei. Por sorte, minha mãe conseguiu vender o apartamento, tiramos os móveis e nos mudamos para outro lugar.”

O caso de Joana aconteceu em 2015, mas recentemente, com a guerra das facções, a situação no conjunto habitacional Maria Tomásia, onde ela morava, piorou. Cerca de 20 famílias já prestaram queixa no 30º Distrito Policial após terem sido expulsas de casa, afirma o delegado adjunto Armando Albuquerque Silva. “Essas expulsões se intensificaram no final do ano passado, devido à busca hegemônica pelo controle de tráfico na região”, conta ele. “As pessoas são expulsas de forma direta, intimidatória e sob ameaça de morte. No começo, os criminosos concediam prazo. Agora, não”.

As famílias expulsas, que prestaram queixa na polícia, nada têm a ver com o tráfico. Elas apenas foram contempladas por apartamentos do Programa Minha Casa, Minha Vida e mudaram para o conjunto. A maior parte das expulsões, de acordo com o delegado, aconteceu porque a família que recebeu o imóvel era oriunda de um bairro que passou a ser dominado pela facção rival quando os grupos entraram em guerra. Mesmo com as investigações policiais, os moradores não têm mais coragem de voltar. Segundo o delegado, alguns já foram incluídos em outro programa habitacional do Governo. Além desses casos, as expulsões também podem acontecer porque algum membro da família tem dívida com os traficantes, faz parte de uma facção rival ou a residência é vista como um ponto estratégico para a venda de drogas.

Territórios divididos

Os enfrentamentos entre as facções rivais são frequentes na periferia de Fortaleza. E a divisão geográfica entre elas facilita isso. Às vezes, uma comunidade dominada pelo Comando Vermelho está separada apenas por uma rua de outra, sob comando da Guardiões do Estado. Na tarde de quarta-feira, 14 de março, parte dos policiais de outra base fixa colocada entre os bairros de Gereba (do CV) e Babilônia (da GDE) haviam saído para uma ronda. Tinham sido avisados que, em plena tarde, um grupo da Guardiões do Estado tentaria invadir a área do rival.

Essa proximidade geográfica não apenas facilita os enfrentamentos como também dificulta a vida das pessoas comuns. Um morador da área dominada por traficantes de uma facção pode ser impedido de circular pela área da outra facção. Há regras escritas nos muros para entrar em cada território. “Ao entrar, abaixe os vidros e tire o capacete”, dizem as pichações. E há olheiros do tráfico onde menos se espera, explicam os moradores. “Eles estão vendo tudo. Não posso conversar com você. Não posso nem levar uma merenda para aqueles policiais que ficam ali o dia inteiro [na base]. Se a gente fizer isso, amanhã a gente morre”, explicou em um sussurro rápido um deles.

Em uma escola municipal da comunidade Barroso, um dos educadores explica que a dificuldade de circular na área inimiga é um problema também para os estudantes. “No início do ano letivo, teve mãe que nos procurou para pedir a transferência do filho para outra escola. Elas viviam em uma área dominada pela facção inimiga da que manda aqui. E acabavam abordadas ao chegar nesta região no caminho para a escola. Os traficantes disseram para que elas não voltassem mais”, explicou ele.

Nas ruas de Fortaleza, a sociedade parece à flor da pele. “O Estado precisa fazer uma política de prevenção adequada”, afirma o pastor Jamieson Simões, morador da periferia da capital. “Meu bairro tem 70.000 adolescentes e jovens e apenas 6.000 vagas nas escolas. Há um único centro cultural para 210.000 habitantes. Que oportunidades esses meninos [que entram no tráfico] têm?”, diz ele, em uma cerimônia em homenagem às vítimas da chacina de Benfica. Ele segura nas mãos desta repórter e a abraça, com os olhos marejados. “Está muito difícil a situação. Muito difícil.”

CEARÁ TERÁ CENTRO DE INTELIGÊNCIA CONTRA O CRIME ORGANIZADO

Diante do caos instaurado pelas facções criminosas no Estado, o Ceará terá um Centro Integrado de Inteligência para o Combate ao Crime Organizado. O anúncio foi feito no último dia 14 em Fortaleza pelo Governo federal. O centro investigará a atuação destes grupos criminosos no Nordeste, integrando as investigações de todos os Estados da região. “Haverá uma integração do sistema de inteligência dos Estados e dos sistemas de identificação civil”, destaca o secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Estado, André Costa.

O centro, segundo ele, deve ajudar a suprir uma dificuldade de investigação contra as facções. Nos últimos meses, casos envolvendo membros do PCC no Estado deixaram explícita a falta de contribuição entre as inteligências dos Estados. Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, assassinados no Estado em meados de fevereiro em uma área indígena, viviam em uma mansão em uma área nobre da região metropolitana de Fortaleza. Dias depois, outro membro da cúpula do PCC, Claudiney Rodrigues de Souza, acabou preso ao desembarcar em São Paulo vindo de Fortaleza. Ele também morava em uma área nobre da capital cearense havia quatro anos, apesar de ser foragido da Justiça de Minas Gerais e procurado pela Interpol.

“Há uma ausência de integração nas bases de dados. O criminoso foge de um Estado, vai para outro, faz outro RG com outro nome e a digital dele não está num banco de dados para que se veja que ele não é quem ele diz que é. Há algumas questões que não é o Estado sozinho que vai resolver˜, destaca ele.

O secretário, que reconhece que as facções estão em guerra no Estado, destaca que o problema tem uma origem social importante. “Há muitos jovens Nem/Nem, que nem estudam, nem trabalham. É preciso trabalhar a questão da prevenção”, ressalta ele. “Por isso, o Estado tem investido em escolas de ensino médio em tempo integral”, destaca. Ele afirma que o Governo realizou um levantamento dos pontos mais problemáticos em Fortaleza e apontou nove áreas em que a disputa entre os grupos criminosos é mais grave. Nestes locais, aponta ele, estão sendo colocadas bases da polícia. Também estão sendo implementados projetos sociais, como atividades para a terceira idade com o Corpo de Bombeiros, para dar uma “ideia de proteção”. “É preciso que as estruturas do Estado assumam protagonismo e estamos iniciando este trabalho”, afirma o secretário.

El País


Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.

Recomendamos pra você


Receba Notícias no WhatsApp