BRASIL

Herói brasileiro: diretor de ‘Joaquim’ fala sobre ‘recriação’ de Tiradentes

A RELEITURA de um herói brasileiro

Por Paulo Dantas

O cineasta pernambucano Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”), levou seu último filme, “Joaquim”, para o Festival de Cinema de Berlim, um dos principais do mundo. E foi lá na Alemanha que o filme, que mostra um Tiradentes jovem e é descrito pelo diretor como uma crônica do Brasil colonial, teve sua primeira exibição. Após a exibição um critico português chegou a ver na imagem de Tiradentes, pintada por Gomes, uma analogia a Lula, o que Gomes negou. Em conversa com a Revista NORDESTE, Gomes fala sobre como vê a recepção de franceses, espanhóis, alemães e ingleses diante do recorte da história brasileira. O cineasta também afirma que os acontecimentos retratados no filme têm muito a ver com o que vive hoje o Brasil. Após a exibição de Joaquim no Festival de Cinema de Berlim, o cineasta pernambucano e outros 11 realizadores brasileiros também presentes no festival aproveitaram para lançar manifesto da classe cinematográfica contra o governo de Michel Temer. Na carta, os diretores declaram “uma grave crise democrática no Brasil”. “Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos”, anuncia um dos trechos iniciais da carta, lida em inglês por Marcelo Gomes durante coletiva de imprensa no festival. 

Revista NORDESTE: O que o levou a fazer ‘Joaquim’, o Tiradentes jovem?

Marcelo Gomes: Tudo começou com o convite do produtor espanhol José Maria Morales, da Wanda Films, para participar do projeto ‘Libertadores’, de uma TV espanhola, cuja ideia era realizar oito películas sobre protagonistas das lutas de independência na América Latina. Duzentos anos após o início dessas lutas, o projeto pretendia resgatar na tela o pensamento e a obra das figuras mais relevantes do processo de emancipação do Continente. O herói brasileiro escolhido por eles era o Tiradentes. Gosto muito de filmes históricos e já havia trabalhado em dois outros filmes de época, onde tive experiências extremamente gratificantes: Madame Satã (como roteirista) e Cinema, Aspirinas e Urubus (como roteirista e diretor). O convite do José Maria era irrecusável e foi me dada total liberdade criativa, mas com a crise na economia da Espanha, o projeto foi paralisado. Eu já estava completamente fascinado com o Brasil colonial que encontrei em meio às leituras, daí o João Vieira Jr., meu produtor brasileiro, decidiu seguir em frente com o projeto, embarcado posteriormente pela produtora portuguesa Ukbar Films.

NORDESTE: Por que escolher a perspectiva anterior à luta de Tiradentes?
Gomes
: Desde o início, meu desejo era enfocar, principalmente, o lado mais humano e a personalidade de nosso herói, por isso, o argumento partiu de situações fictícias mescladas a relatos históricos. Quis penetrar no universo pessoal de Joaquim e aproximar-me dele sob o olhar da emoção e não pelos seus feitos militares. Durante o meu processo de investigação sobre a vida do Alferes Joaquim Jose da Silva Xavier, nome oficial dessa figura histórica, fiquei fascinado com os relatos sobre os costumes do século XVIII e iniciei um exercício de imaginação sobre as relações humanas no Brasil daquela época. Mergulhei no cotidiano desse universo, o jeito que viajavam, como comiam, dormiam, namoravam e sentiam. Ao mesmo tempo, me deparei com um Brasil colonial caracterizado por profundas desigualdades sociais, onde uma pequena elite enriquecia a custa do trabalho de uma população formada por escravos africanos, nativos e mestiços. Assim, fui constatando que as fraturas sociais presentes no Brasil e no resto da América Latina têm suas origens nesse período da história cruel e desumano. O passado não só explica o presente como também faz parte dele.

NORDESTE: O senhor considera que o Brasil de hoje carece de heróis?
Gomes:
Acho que mais do que heróis, precisamos entender melhor nossa história, principalmente, os momentos de revoltas, rebeldias e lutas libertárias. Temos momentos fascinantes como a revolução de 1817, em Pernambuco, onde foi criada a primeira constituição brasileira e outros tantos como a Sabinada, a Balaiada, a Revolta dos Malês, que foi uma rebelião comandada pelos escravos na Bahia. São nesses momentos históricos que enxergamos as tais fraturas, conhecemos o nosso país e nos revemos enquanto seres integrantes de uma cultura.

NORDESTE: Foi difícil fazer um filme de época? Como foi a escolha das locações?
Gomes:
As filmagens foram realizadas na região de Diamantina (Minas Gerais). Rodamos em quatro semanas e isso só foi possível graças a uma equipe dedicada. O orçamento foi pequeno, considerando que era um filme de época com um grande elenco. Todos na equipe se empenharam muito e passamos bastante tempo em preparação para não perdermos nenhum momento durante a rodagem. Entre preparação, filmagem e desprodução, ficamos em Diamantina de junho a setembro. As escolhas das locações foram feitas não considerando apenas a beleza, mas principalmente a função dramatúrgica necessária ao filme. Falávamos de um Brasil colonial impenetrável, árido, perigoso e necessitávamos de locações que exalassem essas dificuldades, de um Brasil ainda a ser desbravado.

 

Cena do filme rodado por Gomes. Tiradentes (à direita) é vivido por Júlio Machado

NORDESTE: Qual foi o maior desafio para fazer o filme?
Gomes:
O maior de todos foi fazê-lo em apenas quatro semanas e com R$ 2 milhões para sua produção. As locações eram de difícil acesso e o elenco era extenso. Filme de época exige uma imensa quantidade de detalhes e a criatividade foi a chave para vencermos as limitações. Contei bastante com a inventividade de dois grandes parceiros: Marcos Pedroso na direção de arte e Pierre de Kerchove na fotografia. Além do apoio incondicional do produtor João Vieira Jr., que me acompanha em todos os meus filmes e realizou um trabalho primoroso.

NORDESTE: Como foi a construção do roteiro, quais as inspirações?
Gomes:
Adoro cinema histórico e queria ter liberdade total para refletir sobre o mito do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Li vários livros sobre o nosso herói, como: A Inconfidência Mineira, de Márcio Jardim; A devassa da devassa, de Kenneth Maxwell, uma narrativa sobre o processo contra os inconfidentes; O manto de Penélope, de João Pinto Furtado, com uma visão menos idealizada da figura de Tiradentes; e O enigma de Tiradentes, de Miguel Aparecido Teodoro, que discorre acerca das dúvidas e sombras existentes sobre o herói. Todos os livros citados dão a sua versão dos fatos sobre o personagem. O que se percebe, entre os historiadores, é que não existe unanimidade sobre essa figura. Às vezes, é apresentado como um homem sem defeitos, puro, outras vezes, como uma pessoa de suma importância na Inconfidência ou até mesmo como personagem secundário no processo da conspiração. Após ler essas várias biografias, percebi que queria fazer algo que tratasse do Brasil colonial, mas como uma crônica sobre o país nesse período e menos como uma cinebiografia. Outros livros essenciais foram Desclassificados do ouro, da historiadora de Laura de Mello e Souza, e História da vida privada – Volume 1, uma compilação de textos com organização de Laura, que terminou virando consultora histórica do filme. Essas publicações expuseram bastante o caldo cultural que estava em ebulição naquele momento do Brasil, de uma parte mais obscura e menos frequente no que entendemos pela “história oficial”. É bom salientar que, de documentos históricos e oficiais sobre Tiradentes, salvo engano, existem apenas o registro do batismo e os Autos da Devassa, que constituem o processo criminal contra os conspiradores. Este, por sinal, é tema do belíssimo filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1972, Os Inconfidentes. Depois disso veio a escrita e imaginei um filme que não fosse uma novela histórica, tampouco um relato oficial, e sim uma crônica, uma poesia do cotidiano – um curto período na vida de um alferes, com seus afetos, desejos, contradições, com sua ética flexível e falhas de caráter. É a desconstrução do mito. Minha preocupação era construir um novo caminho para realizar esse cinema histórico, sem pompa e sem tom folhetinesco, com a possibilidade de propor releituras ficcionais para os personagens. Comecei a enveredar pela imaginação e por questões intrigantes: como um alferes da Guarda Real se transforma em um rebelde contra a própria Coroa que ele protege? Como se dá esse processo de conscientização política dele no século XVIII, quando a própria noção de ética era bastante flexível? Não existe um documento histórico que fale disso. Portanto, eu poderia inventar sobre um passado de sujeira e precariedade, no qual as relações de afeto e poder se misturavam e a própria noção de ética fosse um conceito flexível. Foi um momento de grande confusão na nossa formação social, com a imposição cultural de quem vinha de Portugal e o tratamento desumano às populações autóctones, dado principalmente aos índios e aos africanos, vindos para cá na condição de escravos.

NORDESTE: Conversando com a escritora Laura de Mello e Souza, ela explicou que “Os desclassificados do Ouro” acabavam fazendo uma espécie de paralelo entre os desclassificados e a elite de antes, com o Brasil de hoje. Há esse gancho também no filme?
Gomes:
Sim. Existe sim esse gancho, mas não quero adiantar em que momentos do filme acontecem esses paralelos, até porque, o que eu espero é que cada espectador construa-os em seu imaginário. Afinal, quando um filme se apresenta na tela cabe ao espectador definir a singularidade de sua relação com ele.

NORDESTE: O que você espera da recepção do filme, inclusive em Berlim?
Gomes:
Espero que eles recebam com muito interesse. Berlim é um festival que se interessa por filmes de temática política e nosso filme quer refletir sobre as heranças sociais provocadas pelo processo de colonização de nosso país e sua similaridade com processos que também aconteceram em outros países da America Latina, África e Ásia. É um festival aberto, com a presença da crítica e do público, assim poderemos ter um primeiro contato com uma camada diversa de espectadores e sentir as primeiras reações.

NORDESTE: Você participou da criação do roteiro de ‘Madame Satã’, juntamente com Karim Aïnouz e Sérgio Machado. O filme parece destoar um pouco do seu cinema mais intimista. Como foi a experiência?
Gomes:
Tudo que me intriga, me impressiona e o que eu não compreendo eu tendo a colocar no meu cinema e nos personagens que crio. Meu cinema é um cinema de personagem. Foi assim em todos eles. O personagem está no centro de tudo. Portanto, a trilha sonora, a fotografia, a direção de arte são elementos moldados às experiências dos personagens. O que eu desejo com isso é construir uma narrativa emocional para o personagem, nada de causa e efeito. As ideias são guiadas pelas emoções e sensações. Esse é o cinema que me interessa. Se é essencial e tocante, o público é que tem que me dizer. Da minha parte digo que é construído com muita verdade, por isso acho que o JOAQUIM não destoa em nada de meu cinema. Joaquim , assim como o sertanejo Ranulpho, o geólogo Zé Renato, a médica Verônica ou o metroviário Juvenal, é um herói solitário em busca de uma sentido para suas ações e para a sua vida.

Equipe em Berlim, durante exibição do filme

NORDESTE: As parcerias continuam em ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ (roteiro seu, de Karim Aïnouz e Paulo Caldas), ‘Viajo porque preciso, volto porque te amo’ (direção compartilhada com Karim Aïnouz) e o ‘Homem das Multidões’ (direção compartilhada com Cao Guimarães) como é dividir a direção? Imagino que deva ter motivações diferentes em cada filme.
Gomes:
Esse trabalho de colaboração, co-direção, sempre aconteceu no meu trabalho. Fiz curtas com o Cláudio Assis e a Adelina Pontual nos meios dos anos 90 quanto trabalhávamos na Parabólica Brasil, depois co-dirigi um curta com o Beto Normal, ‘Viajo por que preciso’ é uma co-direção com Karim Ainouz e o Homem das Multidões com Cao Guimarães. Tenho a sorte de ser amigo de pessoas que tanto admiro o trabalho e o respeito que elas têm pelo cinema. Compartilhamos de pensamentos iguais sobre o que queremos com esta arte: a busca de novas linhas narrativas para se contar uma história. Assim, a troca de ideias é sempre muito prazerosa. A parceria é importante para desenvolver um diálogo artístico e esse diálogo está presente no produto final do trabalho. Além do mais, criação é um ato muito solitário e trabalhar em parceria é muito mais divertido. Essas parcerias surgiram naturalmente, a partir de afinidades estéticas. Fico pensando em alguns bons momentos de algumas cinematografias mundiais. Existia esse trabalho cooperativo. Não sei se estou enganado, mas no período do neo-realismo italiano, o Fellini trabalhava como assistente do Rosselini e que as vezes alguns diretores trabalhavam juntos em roteiros. No período da Nouvelle Vague era também uma trupe e mais ainda nos 70, o novo cinema alemão, onde Fassbinder, Wenders e Herzog tinham a mesma casa de produtora.

NORDESTE: Sei que é difícil definir um estilo, mas entendo que seus filmes pontuados por silêncios e angústias interiores, apontam para um cinema mais introspectivo, estou certo? Quais suas principais influências e como você se define?
Gomes:
Comecei no cinema com um cineclube e tive a oportunidade de assistir filmes representantes de vários estilos. Fui influenciado por tudo que vi. Acho que o realismo italiano (de Pasolini, de Sicca, Visconti, Antonionni, etc) e o cinema social inglês (Ken Loach e Meigh Leigh) são duas grandes influências.

NORDESTE: Recentemente o curador do Fest Aruanda, Flávio Vilar, afirmou que a renovação do cinema brasileiro está vindo de Pernambuco, você concorda com essa afirmação? Por quê?
Gomes:
Sim. É um cinema, pulsante, singular e questionador. Essas são as principais qualidades de qualquer cinematografia autoral.

NORDESTE: Quais os próximos projetos?
Gomes:
Irei rodar um documentário e uma ficção que se passam no agreste pernambucano. Tenho ainda projetos com Karim Ainouz e Cao Guimarães, mas por ora estou focado no lançamento do Joaquim, previsto para 21 de abril.
 

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