BRASIL

O retorno do Nordeste brasileiro ao judaísmo

Eliahu Ben Avraham acaricia o rosto do filho Yochanan, que, sentado ao lado da irmã Hanna e da mãe, Jucy, entoa as palavras do Vaichulu, uma das principais rezas do Shabat. Antes de ser integrado à comunidade judaica de Belo Jardim, uma pequena cidade do agreste pernambucano, Eliahu era até então Ernesto Gomes Neto. Com o rosto enrubescido de emoção e corado pelo vinho das últimas orações, ele me fala da honra de dar a si e aos seus filhos nomes hebraicos e de retornar à religião dos antepassados.

 A família de Avraham descende de cristãos-novos portugueses e brasileiros que lutam hoje para retornar ao judaísmo. Ao lado de outras cinco ou seis famílias na mesma condição, eles improvisam uma pequena sinagoga na sala de um sítio em Serra dos Ventos, distrito de Belo Jardim.

O Shabat é levado muito a sério. Começa com a aparição da primeira estrela na noite de sexta-feira e termina somente na Havdalá, no início da noite de sábado. As mulheres preparam a chalá, o pão trançado, e a bênção do vinho é regada pela produção artesanal de Baruch Araújo. Com a típica simpatia nordestina e cheio de orgulho da sua vinícola caseira, Baruch diz ao final da reza: “A água no Nordeste é pouca, difícil; então, nós damos a água para os passarinhos e bebemos vinho, que é para cooperar com os passarinhos.” À mesa, farofa, banana, cuscuz, cachaça e outras iguarias nordestinas ficam lado a lado com a chalá, o Sidur (livro de rezas) e o talit (xale ritual).

A terra seca do agreste já não vê água há anos. Quando chove um pouco, verdeja, os pássaros cantam, as árvores revivem e, como por um milagre, o judaísmo também renasce nas vozes comovidas dos presentes, com toda a força ancestral. Na maior parte das vezes, os bnei anussim aprendem sozinhos o significado das palavras e das rezas hebraicas, com o auxílio da internet, e têm uma vida judaica tão profunda e verdadeira quanto muitos dos judeus dos centros urbanos. No entanto, vivem aprisionados entre dois mundos. O seu direito de retorno ao judaísmo está sendo discutido no Knesset, o Parlamento israelense. Pela lei religiosa judaica (Halachá), não existe retorno espontâneo: a conversão é obrigatória para qualquer pessoa não nascida de mãe judia. Ainda que os seus antepassados tenham sido judeus, eles precisariam se converter por causa do longo tempo de afastamento da religião. Isso cria uma situação polêmica, que faz com que os descendentes dos cristãos-novos, convertidos à força séculos atrás, tenham de enfrentar um novo tribunal, dessa vez judaico, rabínico, para serem considerados “oficialmente” judeus.

A busca pela ascendência judaica aumentou muito e se tornou ainda mais polêmica com a nova política imigratória de Portugal e Espanha. Os dois países estão concedendo cidadania aos descendentes de sefaraditas que conseguirem provas documentais das suas origens ibéricas – uma espécie de reparação e compensação pela expulsão e pelas atrocidades cometidas contra o povo judeu durante a Inquisição.  Até o momento da grande explosão populacional brasileira, durante a descoberta de ouro e diamante em Minas Gerais, a arraigada cultura da cana-de-açúcar tinha sido a grande responsável pela fixação de gente na nova terra. A economia do açúcar se desenvolveu graças às relações familiares e comerciais entre os cristãos-novos e os judeus portugueses, que, após recuperarem a liberdade na Holanda, se espalharam pelo
Nordeste do Brasil, estabelecendo-se principalmente em Pernambuco, para onde vieram em grande número durante a Recife holandesa (1630–1654), período em que Maurício de Nassau governou por sete anos (1637–1644).

Hoje, não só no Nordeste, um grande número de pessoas espalhadas pelo Brasil está se reintegrando ao judaísmo pela ancestralidade, pela genética, por tradições culturais ou simplesmente porque gosta da cultura judaica. “O significado maior do judaísmo é, ou pelo menos deveria ser, a justiça social”, conta o rabino Gilberto “Moré” Venturas, um dos maiores defensores da causa dos bnei anussim no Brasil. Para fortalecer o movimento de “retorno”, o rabino organiza todos os anos em Recife a Festa de Purim. Pelo menos 200 bnei anussim se reúnem na Rua dos Judeus, no Centro da capital pernambucana, para escutar a leitura da Meguilat Esther, o livro de Ester, ponto principal do Carnaval judaico, quando se festeja a libertação dos judeus da Pérsia. Depois da leitura, vem a festa, com muita dança e alegria, em frente à Sinagoga Kahal Zur Israel. Em alguns anos, Purim coincide com o Carnaval de Recife.

“O Nordeste é uma região habitada majoritariamente por descendentes dos cristãos-novos portugueses”, diz o historiador Caesar Sobreira. São abundantes as pesquisas sobre a nossa herança cristã-nova, sobretudo a partir dos estudos pioneiros da professora Anita Novinsky. Vários outros autores apontaram para a mesma realidade histórica, como Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, e Câmara Cascudo. “Temos a historiografia, a etnografia. Falta uma prova definitiva, que vai vir da genética molecular”, conta Sobreira.

Após tanto tempo de afastamento, os motivos para o reencontro com o judaísmo envolvem sempre a forte religiosidade nordestina. Muitos bnei anussim tinham outras religiões e buscam agora a origem dos seus sobrenomes, pesquisando árvores genealógicas em documentos da Inquisição. Samuel Benoliel, presidente do Confarad, o
Conselho Sefaradita do Brasil, aponta para a angústia que todos sentem quando, ao tentar retornar ao judaísmo, esbarram em barreiras burocráticas e afetivas. Uma conversão coletiva organizada meses atrás em Recife pelo rabino Moré Venturas serviu para demarcar a face quase política desse movimento de retorno de muitos descendentes dos antigos sefaraditas – que, dizem eles, sempre guardaram a sua mítica “chave de casa”.

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