BRASIL

Revista NORDESTE investiga as violências diárias contra as mulheres no Brasil

Por Paulo Dantas

Estudo divulgado pelo Banco Mundial aponta que é mais fácil uma mulher com idade entre 14 e 44 anos ser estuprada do que ser vítima de câncer ou acidente. No Brasil, mais de 89% dos estupros acontece com pessoas do sexo feminino. 70% dessas vítimas de estupro são crianças e adolescentes. A cada 11 minutos uma mulher é estuprada. São 130 cada dia. Esses dados ainda são subnotificados, apenas 10 % das mulheres violentadas e estupradas têm coragem de denunciar. Apenas 35% das mulheres que apanham dos seus companheiros têm coragem de denunciar.

O tema voltou a pauta depois que três casos de estupros coletivos assombraram o país. O mais rumoroso se deu no Rio de Janeiro. Uma menor de 16 anos no Morro do Barão, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. O caso veio a público com a circulação de um vídeo nas redes sociais no qual uma jovem desacordada é manipulada por homens que abrem suas pernas, filmam sua vagina, seu ânus, zombam do estado da menina, em especial de suas partes íntimas, dizendo que mais de 30 passaram por ali.

O outro caso aconteceu com uma garota de 14 anos, vítima de um estupro coletivo na cidade de Pajeú do Piauí, distante 460 km de Teresina, no Sul do estado. De acordo com a polícia, quatro pessoas são suspeitas de participação no crime, entre elas, três adolescentes. O crime ocorreu na noite do dia 7 de junho, em um ginásio poliesportivo e, segundo a polícia, a menina foi encontrada desacordada pela madrasta, que ainda chegou a flagrar o ato criminoso.

Duas semanas antes, ou seja, na mesma época em que o estupro coletivo da menina de 16 anos no Rio veio à tona, uma jovem de 17 anos foi encontrada amordaçada com as próprias roupas após ter sido vítima de violência sexual em uma obra abandonada em Bom Jesus, a 635 km de Teresina, também no Piauí. Os suspeitos são quatro adolescentes e um rapaz de 18 anos.

As situações assustam, e revelarem um grau extremo de violência sexual. Grupos de lutas pelos direitos das mulheres apontam para um fenômeno já conhecido: A Cultura do Estupro. Explica-se. Nos casos foi comum ver nas redes sociais e na boca de interlocutores, até de um delegado, argumentos como “foi consentido”, apesar das meninas estarem desacordadas. O jornal Extra, primeiro a divulgar o caso no Rio de Janeiro, recebeu uma enxurrada de argumentos dos leitores como: “ela também não é santa. teve o que procurou"; “foi orgia, suruba, e não estupro”; “ela não presta, teve filho aos 13 anos”; "e ela não vai responder por associação ao tráfico?"; “os áudios mostram que ela é bandida”; "ela só denunciou porque o vídeo se espalhou na net"; "ela voltou ao lugar do crime… logo, não está abalada". 

A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasi

A coordenadora de políticas públicas para as mulheres da Ong Cunhã Coletivo Feminista de João Pessoa, Anadilza Paiva, acredita que existe uma onda atual conservadora no país, mas entende que a questão é mais profunda. O cerne da questão apontaria para os pilares da sociedade. Pilares regidos pelos sistemas patriarcal, racista e capitalista. “São sistemas de opressão e de exploração onde essa exploração é toda perpassada por relações de poder. Onde ricos têm poder sobre pobres, brancos sobre negros. A heteronormatividade (situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas) rege, e nesse sistema patriarcal ainda há um pensamento hegemônico, onde os homens têm poder sobres às mulheres e elas vivem para servi-los. E uma vez que se rompe com essa cultura não se aceita”, argumenta a estudiosa, que trabalha há 15 anos em defesa dos direitos da mulher.

Anadilza explica que em algum momento existe a culpabilização, criminalização e o julgamento de das mulheres quando acontece o estupro. “Seja por um membro da família, um profissional, na escola. Essa pessoa teve algum momento que foi responsabilizada. Quando quem é estuprada é uma menina pequena, se diz: esse pai era louco. Quando é uma adolescente, se diz: era porque ela andava de short, de decote dentro de casa, provocava. A filha provocava o pai, as pessoas dizem. Quando acontece com uma menina virgem, na rua, que saiu da escola, as pessoas dizem: quem mandou passar naquele lugar esquisito, por que estava sozinha, por que não estava acompanhada com o pai e com a mãe? Eu ouvi um depoimento de uma pessoa de mais de 60 anos que foi estuprada aos 28 anos, na sua cama, dentro de sua casa, de camisola. O cara invadiu a casa dela. Ainda apareceu vizinho dizendo que era porque ela trabalhava com menores infratores”. Em contrapartida a culpabilização da vítima, o agressor é inocentado. “O meu taxista quando a notícia saiu, disse: 30 inocentes e uma culpada, mais o pai e a mãe. Eu perguntei: Como assim culpada, meu senhor? Ele respondeu: por que esse pai e a mãe deixaram essa menina ir para o funk?”. 

“Bela, Recata e do Lar”, novo meme

O retorno do termo “Bela, Recatada e Do Lar” na descrição da atual primeira dama Marcela Temer em uma revista nacional, causou polêmica e uma série de discussões sobre os avanços que o feminismo trouxe para a sociedade. A expressão também descortina muito da luta das mulheres nos últimos anos. “A gente não está recriminando quem quer ser bela, quem quer ser recatada e quem quer ser apenas do lar! Mas a gente não só saiu de casa, estamos nas ruas e estamos ocupando todos os espaços. Além disso, as mulheres pobres e negras estão avançando os seus estudos, estão alcançando direitos trabalhistas na legislação. E essa história da mulher negra ser a que vai cuidar da filha da branca, também está sendo rompido. As mulheres negras estão ocupando lugares na educação, com mestrados, doutorados. Estamos avançando sobre a decisão do que fazer sobre o nosso corpo”, defende.

Anadilza acredita que o movimento feminista vive de avanços e retrocessos. Para a coordenadora do Cunhã, toda a atual reação conservadora já era esperada e isso é mais um dos sinais que houve avanços significativos. “Os nossos avanços acenderam sinais e estamos numa onda nesse momento extremamente conservadora e machista”, frisa. 

O avanço conservador está, entre outras vertentes, no fundamentalismo religioso, cujo o deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP) é um dos principais expoentes. O parlamentar causou furor dos movimentos sociais quando presidiu a Comissão dos Direitos Humanos e levantou bandeiras contra a definição da família (que aglutinava formas além do conceito hétero tradicional) e questões sobre o direito ao aborto. “Feliciano começou a dizer coisas absurdas e ilegais. Se um legislador fala e fica impune, então todo mundo pode. O fundamentalismo religioso, é cego, inoperante e não governa para a população geral. Eles dizem estar trabalhando em nome de Deus para legitimar as lutas do dinheiro e do capital”, acredita.

Mulher objeto

Outro ponto discutido pelo movimento feminista é como é tratado o corpo da mulher pela mídia. Pesquisa divulgada em 2013, pelo Data Popular e o Instituto Patrícia Galvão, pontuou que a mulher é mostrada como objeto sexual "reduzida a corpo e bunda", para 58% dos entrevistados. A maioria também acha que padrão de beleza mostrado é longe da realidade. 84% dos entrevistados dizem que as propagandas na TV usam o corpo da mulher como chamariz para promover a venda de produtos e serviços. Segundo a pesquisa, 56% acham que as propagandas na TV não mostram a mulher real, mas um padrão de beleza muito distante da brasileira. Outro ponto perturbador é ainda a cultura que a mulher deve servir ao marido, independente se sentir ou não vontade. “Uma mãe dizer para uma filha que não está com vontade de fazer relações sexuais, que se ela não fizer, o marido fará com outra. A mulher tem que fazer à força… A gente ainda naturaliza essa cultura de mulher objeto. A mulher tem que estar a serviço em casa, na cama, no trabalho, e nas relações sociais”.

Apesar de avanços, ainda a violência

Apesar dos avanços recentes do movimento feminista há um incômodo crescente: as estatísticas têm mostrado um aumento da violência. Essa violência é visível além dos dados estatísticos do Mapa da Violência, também nas redes sociais com ofensas, demonstrações de preconceito e de crimes cometidos contra a mulher, com exposição inclusive de vídeos como no caso da garota do Rio de Janeiro. Aparentemente as pessoas que fazem isso não se preocupam se serão presas ou rechaçadas. Além disso, em quase todas as capitais já existe uma rede instalada com delegacias, juizados, assessorias, ministério público, centros de referencias, casas de abrigo, e políticas de apoio a mulher. Mesmo com a implementação da lei Maria da Penha há um crescimento da violência no Brasil. 

O Mapa da Violência tem apontado um crescimento da violência tanto física, quanto sexual em relação às mulheres. Segundo dados do Mapa divulgados em 2015, pelos registros do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), entre 1980 e 2013, num ritmo crescente ao longo do tempo, tanto em número quanto em taxas, morreu um total de 106.093 mulheres, vítimas de homicídio. Efetivamente, o número de vítimas passou de 1.353 mulheres em 1980, para 4.762 em 2013, um aumento de 252%. A taxa, que em 1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil, passa para 4,8 em 2013, um aumento de 111,1%.

Entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. Essas 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos diários. Levando em consideração o crescimento da população feminina, que nesse período passou de 89,8 para 99,8 milhões (crescimento de 11,1%), vemos que a taxa nacional de homicídio, que em 2003 era de 4,4 por 100 mil mulheres, passa para 4,8 em 2013, crescimento de 8,8% na década.

Limitando a análise ao período de vigência da Lei Maria da Penha, que entra em vigor em 2006, observamos que a maior parte desse aumento decenal aconteceu sob égide da nova lei: 18,4% nos números e 12,5% nas taxas, entre 2006 e 2013. Se num primeiro momento, em 2007, registrou-se uma queda expressiva nas taxas, de 4,2 para 3,9 por 100 mil mulheres, rapidamente a violência homicida recuperou sua escalada, ultrapassando a taxa de 2006. Mas, apesar das taxas continuarem aumentando, é observado que a partir de 2010 arrefece o ímpeto desse crescimento. As oscilações nacionais entre 2003 e 2013 não foram muito significativas, muitas das Unidades experimentaram fortes mudanças. Diversos estados evidenciaram pesado crescimento na década, como Roraima, onde as taxas mais que quadruplicaram (343,9%), ou Paraíba, onde mais que triplicaram (229,2%).

Lutas e conquistas feministas

A estratégia do Movimento Feminista, ao longo dos anos, foi visibilizar a violência e retirar da cabeça das pessoas um ditado muito comum na década de 70 no Brasil: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. A violência nesse estágio era considerada um elemento privado, onde vizinhos, amigos e parentes não deveriam se meter. “A gente fez toda a luta para visibilizar a violência e dizer que não é do campo privado, é da conta de todo mundo. Conquistamos essa discussão”, lembra Anadilza. 

O segundo passo veio a partir da necessidade das mulheres precisarem de um lugar onde pudessem ser ouvidas sem julgamentos. Desta forma, foram criadas as Delegacias das Mulheres. Dez anos depois, se percebeu que os homens que cometeiam a violência não estavam sendo punidos. “Vamos atrás da punição dos agressores e conquistamos uma lei de responsabilização do agressor: A Lei Maria da Penha”. Antes o agressor pagava a pena com cesta básica ou com trabalho nas comunidades, a partir da Lei Maria da Penha o movimento consegue responsabilização do agressor. A mulher passa a contar com toda uma rede de prevenção, responsabilização e assistência.

Todavia, a questão de gênero precisa ser encarada de forma aprofundada ainda, acredita Anadilza. “Não só educação da escola, mas todas as educações”, avalia, se referindo ao atendimento a saúde, principalmente a atenção básica. A feminista reclama que a única ferramenta para combater a cultura do estupro conseguida pelo movimento, o estudo e trabalho com gênero nas escolas, foi retirada da legislação.

 “Conquistamos os serviço (através da Lei Maria da Penha), mas não conquistamos a mudança das mentes, das mentalidades e dos corações. Por que? Ainda temos juízes que não respeitam essa legislação. Ainda temos em todos os serviços quem não respeita a legislação e não quer respeitar. É um conjunto de fatores, não é só uma cultura. Mas nessa história cultural ao mesmo tempo que a gente vê jovens por toda parte do país com manifestações feministas, sem necessariamente estar organicamente em espaços feministas, mas com pensamentos e atitudes feministas… Isto mostra um grande avanço no crescimento da quebra da cultura patriarcal”, entende Anadilza. 

Barrar perdas no Congresso diante do governo Temer

“Neste momento estamos no contrapondo ao golpe, a um governo ilegítimo que está nos tirando direitos. Entendemos esse golpe como o desejo de ruralistas, banqueiros, empresários, políticos de carreira familiar e de carreira de corrupção. Eles se armaram para assaltar o poder e reverter suas perdas”, defende Anadilza. 

O movimento deve se reunir em agosto. O encontro ainda não foi definido, mas será na Paraíba, Pernambuco ou no Ceará. “Vamos não só avaliar a violência, mas todas as perdas, nos voltar para a plataforma feminista sobre o projeto político que temos para o Brasil”, conta. As feministas estão preocupadas com os retrocessos que as bancadas mais conservadores têm conseguido emplacar no Congresso desde Eduardo Cunha (PMDB-RJ), além de perdas com a política de governo implementada por Michel Temer (PMDB-SP). Entre elas, a nomeação de Fátima Pelaes para a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. A secretária é contra o aborto em qualquer circunstância. 

“Enquanto está todo mundo ocupado com a história do golpe, estamos perdendo direitos no campo da educação, saúde, direitos reprodutivos, direitos sociais, da infância e da adolescência, na previdência”, informa Anadilza. A intenção é não permitir o retrocesso, sobretudo da lei Maria da Penha. Mas há outras lutas em curso, entre elas na saúde. Anadilza afirma que o atual governo está acobertando interesses dos planos de saúde. Recentes declarações do novo ministro da Saúde afirmando que não há como o SUS ser universal e que o melhor seria que mais pessoas tivessem acesso a planos particulares, parecem corroborar com a suspeita. “A legislação que está saindo agora nesses dois meses é para encobertar tudo quanto é sacanagem de plano de saúde. Então empresários da educação e da saúde, estão tudo unidos enquanto bancadas no Congresso para defender os seus interesses. Estamos com essa estratégia armada no Congresso e é com isso que estamos nos preocupando”.

Entre os pontos que as novas leis que estão em vias de serem aprovados pretendem tirar estão pontos que mechem diretamente na lei Maria da Penha. Entre elas o fim da assistência à violência sexual. “A mulher só vai poder ser tratada da saúde física e mental, com terapia, mas não vai fazer as profilaxias, não vai ter direito a aborto legal”, ressalta. Promulgada há 10 anos, levantamento feito em 2014 apontava 47 projetos correndo no Congresso que poderiam alterar a lei, todos para flexibilizá-la. “Lutamos mais de 50 anos para ter esses direitos e eles estão sendo tirados em dois meses”, revela a feminista. 
 

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