POLÍTICA

À NORDESTE, Marcio Pochmann revela a realidade estrutural do Brasil pela lente do IBGE

Em entrevista exclusiva à Revista NORDESTE, o presidente Marcio Pochmann, do IBGE, discute a nova era das estatísticas públicas, destacando o compromisso de construir desafios à frente e oferecer uma visão transparente e abrangente dos dados socioeconômicos do país.

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A REALIDADE ESTRUTURAL DO BRASIL PELA LENTE DO IBGE

Por Walter Santos

 

Há um novo tempo no universo das estatísticas públicas voltadas a nortear de forma transparente e abrangente os dados compilados com segurança da informação pelo IBGE decidido a construir novos desafios à frente. Este é o resumo da ENTREVISTA EXCLUSIVA do presidente Marcio Pochmann à Revista NORDESTE. Eis a íntegra:

 

Revista NORDESTE – A cena brasileira convive com realidade em mutação na qual já é possível admitir que na nossa formação étnica contemporânea segmentos, como da negritude, apresenta dados crescentes nas estatísticas. Em tese, isto seria efeito da nova conjuntura de trato do empoderamento negro e das minorias no país pela mídia e sociedade?

 

MARCIO POCHMANN – O primeiro Censo Demográfico realizado no Brasil em 1872 revelou que cerca de apenas 1/3 da população residente era branca. Diante disso, a elite circunscrita ao Império que até então propagava que o novo país era como um europeu: branco, letrado e católico, buscou na ampla presença da população não branca a razão explicativa do atraso nacional. Pela forte ação tanto no Império decadente como na República Velha, os postos de trabalho ocupados pela população não branca foram sendo substituídos por trabalhadores imigrantes brancos europeus. Em especial, as regiões litorâneas do centro sul se destacaram por excluir a parcela da população preta, parda e indígena, das oportunidades abertas pela passagem do trabalho escravo para a mão de obra livre decorrente do nascimento do capitalismo no país. O período marcado pela política de branqueamento – imposta pela elite política – mudou a composição de raça/cor da população brasileira na passagem para o século 20. Com a força da imigração e da ação de encobrimento da população não branca, o 5° Censo Demográfico realizado em 1940, sete décadas depois da realização do primeiro Censo Demográfico (1872), apontou que quase 2/3 população brasileira havia se declarado branca. E assim permaneceu relativamente estabilizada até a década de 1970, com a consolidação da urbanização nacional. É oportuno lembrar que o Censo Demográfico de 1970 – em plena ditadura militar – retirou o quesito de cor e raça da pesquisa.

Na redemocratização política nacional, na década de 1980, a temática raça/cor passou a ganhar outra dimensão, sobretudo com a crescente consciência profunda da desigualdade social instalada no país. As novas pesquisas do IBGE foram revelando a mudança de perspectivas emancipatórias e de busca do reconhecimento dos direitos do desencobrimento da população não branca. Também convém destacar que a transição demográfica em curso, desde a virada para o século 21, passou a apontar a queda geral na taxa de fecundidade das mulheres brasileiras.

 

NORDESTE – Somos então um país mestiço com a quantidade maior de pardos pela primeira vez em relação aos brancos e negros?

 

MARCIO POCHMAN – Até o início do século 20, a predominância na composição raça/cor era da população não branca. Com os resultados do 13° Censo Demográfico, realizado em 2022, a população não branca voltou a ser majoritária, especialmente pela ascensão do segmento pardo. Pelas projeções demográficas existentes, nas duas próximas décadas, a população não branca poderá voltar a ocupar posição equivalente àquela já registrada em 1872, quando foi realizado o primeiro Censo Demográfico da nação. Isso, caso a política demográfica do país não sofra alterações substanciais nos próximos anos. Mesmo assim, a temática da população, desenvolvimento e sustentabilidade ambiental segue cada vez mais estratégica para a redefinição dos destinos da nação. Pela transição demográfica, novos elementos de avaliação e modificação das políticas públicas brasileiras estão sendo introduzidos, o que requer monitoramento e avaliação.

 

NORDESTE – O IBGE cumpre papel determinante e exclusivo para identificar através de Censos os dados fundamentais da sociedade visando, entre outros fatores, construir políticas públicas que possam melhorar a cidadania nacional. Como o Sr define a atual realidade do instituto como formulador?

 

MARCIO POCHMAN – Em quase 90 anos de existência, o IBGE exerce o papel equivalente a uma fotografia da nação, bem como o de bússola da trajetória do país. São mais de 250 pesquisas e estudos técnico-científicos tornados públicos anualmente, capazes de balizar desde o comportamento do custo de vida na economia brasileira (inflação) às condições de saúde, moradia, entre outras mais associadas ao território, de todo o conjunto da população. São subsídios às políticas públicas. Não cabe ao IBGE interpretar os dados estatísticos e georreferenciados que produz. Sua missão institucional é “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania.” Conforme dizia Teixeira de Freitas, o principal idealizador e pioneiro do IBGE: “Faça o Brasil a estatística que deve ter, e a estatística fará o Brasil como deve ser.”

 

 

NORDESTE – É sabido do tratamento restritivo dado pelo governo federal na gestão passada ameaçando até a não realização do Censo – condição “sine qua non” para identificar nossa realidade socioeconômica histórica. A dados da atualidade, com projeção para 2024, como anda o orçamento e o tratamento do atual governo para o IBGE?

 

MARCIO POCHMANN – Assim como o Brasil passou por uma profunda inflexão histórica na década de 1930, com a passagem do antigo e primitivo agrarismo para a moderna sociedade urbana e industrial, a terceira década do século 21 revela uma profunda mudança de época em relação aos possíveis rumos do país. No passado, o esgotamento da antiga Diretoria Geral de Estatística, criada no Império (1871) e que permaneceu ao longo da República Velha até a Revolução de 1930, abriu a possibilidade inovadora para o surgimento do próprio IBGE, em 1936. Em simetria com a transição da Era Industrial para a Digital, o Brasil requer atualmente um novo IBGE. Nos anos recentes, contudo, a trajetória imposta ao IBGE foi a do desmonte institucional, com o corte orçamentário e, por consequência, a redução salarial, o atraso tecnológico e a degradação dos espaços físicos de funcionamento da instituição. Concomitante com a piora nas condições gerais de trabalho, o envelhecimento da força de trabalho e a ausência de concursos levaram ao esvaziamento da força de trabalho associado à rota da precarização e privatização. Atualmente, com o apoio do presidente Lula e a aprovação da ministra Simone Tebet, o IBGE se prepara para o seu fortalecimento em novas bases. A participação dos servidores tem sido fundamental nesse processo, pois apenas com democracia e transparência o país pode constituir o Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (Singed), cuja soberania e a integração das fontes de informações tornam-se compatíveis com as possibilidades abertas pelo curso da atual revolução informacional.

 

 

NORDESTE – Do ponto-de-vista sociológico, como o Sr analisa o aguçamento ideológico no Pais afetando os dramas sociais com efetivo preconceito dos setores mais empoderados contra os segmentos humildes. Na sua opinião, a plataforma digital é instrumento motivador dessa radicalidade à Direita?

 

MARCIO POCHMANN – O Basil surgiu dos negócios do capital mercantil metropolitano, o que significou a sua organização fundada na violência. Em torno dos negócios da exploração colonial, a escravidão, o latifúndio e a monocultura para a exportação era justificada. Nos dias de hoje, os problemas históricos, sem solução definitiva ainda reproduzem, por meio da centralidade da profunda segregação social. Os chamados dois “Brasis” (oficial e real, dos brancos e não brancos, dos pobres e dos ricos, do andar de cima e do de baixo). Também tem grande centralidade atualmente, a dependência externa – da cultura a todas as dimensões da sociedade brasileira. Essa dupla articulação perversa termina por distorcer a própria concorrência intercapitalista e a correlação das forças políticas. Enquanto a estrutura econômica oligopolizada impede a competição, capaz de permitir a repartição dos ganhos de produtividade para salário real, a inovação e a difusão do progresso tecnológico seguem truncadas. O resultado tem sido a constituição de uma espécie de circuito fechado, um clube de ricos plutocratas. Ao mesmo tempo, a distorção na correlação de forças políticas, conduzida pelo condomínio do “andar de cima”, é garantida pela intolerância e violência. A cada ano, a morte de cerca de 100 mil pessoas – decorrentes dos homicídios e mortes no trânsito; perdas de vida banalizadas, praticamente reproduzida pelas plataformas digitais.

 

NORDESTE – Conceitualmente e estrategicamente quais são os principais desafios e projetos prioritários do IBGE para 2024?

 

MARCIO POCHMANN – Após quatro meses à frente do IBGE, já é possível constatar importantes avanços. De um lado – e após um longo tempo, a definição do reajuste salarial de 9%, a preparação para a realização do maior concurso público da instituição, a recuperação de imóveis e a melhoria nas condições de trabalho. De outro, a reorganização democrática e participativa da gestão, com a realização da série “Diálogos”. Inicialmente, os diálogos horizontais, que permitiram a realização do primeiro congresso interno dos servidores do IBGE – definidor das diretrizes institucionais até 2026. Na sequência, os diálogos setoriais, isto é, conversas da presidência com cada uma das diretorias, coordenações e gerências da casa; o que levou à construção do Plano de Trabalho, Orçamento e Regime Laboral para o ano de 2024. Por fim, os diálogos intersetoriais voltados para execução, monitoramento e avaliação do conjunto das atividades do IBGE. Conta para isso, o conjunto de novos projetos especiais a serem lançados no próximo ano.

 

NORDESTE – A desigualdade regional é elemento permanente na história brasileira motivada por vários fatores. Como estudioso, é possível reduzir as desigualdades sociais com a estrutura vigente com o Congresso Nacional formado por setores conservadores impede avanços? O que fazer diante de tamanha realidade?

 

MARCIO POCHMANN – A forma com que o Brasil vem se inserido na Divisão Internacional do Trabalho tem trazido impactos econômicos, políticos, sociais e regionais de grande profundidade. A inflexão vivida pelo país desde o ingresso na globalização enfraqueceu a estrutura produtiva nacional, doravante mais dependente do exterior, pois, devido à desindustrialização, a especialização primária exportadora ganhou mais destaque. Com o deslocamento regional, em termos do dinamismo econômico, de fluxo da renda e do trabalho e da população dos antigos centros metropolitanos situados nas regiões litorâneas para o interior do país, o que se percebe é uma certa inversão da perspectiva de Euclides da Cunha, forjada ao final do século 19. Para ele, havia a existência geográficas de dois Brasis, o pobre e atrasado no interior e o rico e moderno nas áreas litorâneas. Assim, vemos que os sinais de decadência avançam na outrora metropolização das ricas cidades da industrialização litorânea: desemprego em massa, precarização laboral, moradores em situação de rua, violência e crime organizado em profusão. Em vários enclaves, para a exportação no interior do país, o dinamismo econômico se estabeleceu acompanhado de maior fluxo de população, renda, emprego e consumo. A representação parlamentar atual não deixa de expressar as transformações em curso no Brasil contemporâneo.

 

NORDESTE – Há projeção de crescimento expressivo dos 9 estados nordestinos a partir de 2024 em relação às demais regiões. Quais os dados existentes sob seu poder e que projeção faz?

 

MARCIO POCHMANN – As informações mais amplas produzidas pelo IBGE acerca da evolução do PIB dos Estados e Municípios segue em sincronia com as contas nacionais, responsáveis pela geração das informações do PIB nacional. Porém, com certo retardo no tempo. Enquanto as informações disponíveis do PIB dos Estados se referem ao ano de 2022, as informações do PIB dos municípios pertencem ao ano de 2021. Por conta disso, a situação econômica das regiões no país pode ser considerada a partir da trajetória em prazo mais longo. Isso porque a evolução do PIB dos Estados e dos Municípios tem sido bastante heterogênea. Os impactos sobre as regiões são marcantes, com alterações importantes na divisão regional do trabalho, conforme o IBGE tem apresentado. As projeções de natureza econômica, contudo, não fazem parte das atribuições do instituto até o momento.

 

 

NORDESTE – Numericamente, quais os dados mais recentes e atualizados sobre o acesso ao ecossistema digital brasileiro dos mais pobres brasileiros levando em conta ainda a quantidade expressiva de segmentos desplugados?

 

MARCIO POCHMANN – O acesso à internet no Brasil tem avançado nos últimos anos, segundo dados do IBGE. Em 2022, por exemplo, 87,2% da população de 10 anos ou mais de idade tinha acesso à internet, o que equivaleu a 161,6 milhões de brasileiros conectados à rede mundial de computadores. Em consequência, o contingente de brasileiros sem acesso à internet também diminuiu significativamente nos últimos seis anos. No ano de 2022 havia 23,8 milhões de brasileiros sem acesso a internet, enquanto em 2016 eram 59,7 milhões de pessoas, ou seja, redução uma de 60,3% acumulada em 6 anos. Mas a desigualdade entre usuários ainda permanece. Exemplo disso é a proporção de 89,4% dos habitantes das áreas urbanas conectados à internet, ao passo que entre os moradores da área rural havia 72,7% de usuários.

 

 

NORDESTE – A Inteligência Artificial cada vez mais interfere na realidade global podendo até por artifícios modificar processos sociais e políticos, como se deu no Reino Unido, EUA e Brasil recentemente. Num país de dimensão continental como o nosso, o que fazer para preservar a individualidade sem manipulação política?

 

MARCIO POCHMANN – A Divisão Internacional do Trabalho que se encontra em marcha agrupa dois tipos distintos de países. De um lado, as economias produtoras e, em geral, exportadoras de bens e serviço digitais e, de outro, os países consumidores-importadores de bens e serviços digitais. Então, as melhores oportunidades de investimento, emprego e renda estão, em geral, na produção e exportação de bens e serviços digitais. Esta tem sido a via que o governo do presidente Lula tem procurado seguir. Ao mesmo tempo, há a necessidade de perseguir a construção da soberania dos dados, bem como a regulação das formas de operacionalização das tecnologias de informação e comunicação. Dessa forma, erige-se a possibilidade de enfrentar em novas bases a realidade de fake news, pós-verdade, entre outros.

 

 

NORDESTE – por fim, qual a contribuição e essência de sua gestão na formatação de novas políticas públicas para o Brasil, a partir da missão do IBGE?

 

MARCIO POCHMANN – A realidade brasileira apurada continuadamente pelo IBGE, seguindo os métodos técnicos-científicos de padrão estatístico internacional, tem também o papel pedagógico. Contribui para a sociedade monitorar e avaliar o curso pela qual o país tem seguido. É por isso que devemos investir cada vez mais também no chamado letramento estatístico e letramento geoespacial.

 

Da mesma forma, os poderes da República detêm elementos fundamentais para refletir e reorientar suas decisões, que podem tanto consolidar com alterar a marcha pela qual o conjunto do país tem escolhido. Diante disso, nosso papel, por meio da gestão participativa, transparente e democrática, busca oferecer as melhores condições para que o IBGE possa continuar cumprindo a sua missão institucional. A montagem do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (Singed) sob coordenação do IBGE, consiste em avanço adequado e consistente às transformações digitais. Uma excelente contribuição para o futuro soberano justo, sustentável e democrático do Brasil.


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