BRASIL

Barbárie no Nordeste: casos de estupros e assassinatos chocam o país

Entre os incontáveis atos de crueldade que acontecem mundo afora e hoje são temas recorrentes nos noticiários, uma onda de casos de violência contra a mulher chamou a atenção do Brasil para o Nordeste nas últimas semanas. Histórias de horror, envolvendo meninas e mães de família, violentadas de forma brutal e assustadora. Os quatro casos, marcados por sequestro, tortura, estupro e assassinato, aconteceram em um período de apenas 35 dias.

Seja por herança cultural, imposição física ou quaisquer outros motivos, alguns grupos são naturalmente mais vulneráveis à violência. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de um terço das mulheres do mundo é vítima de abusos físicos ou sexuais. As barbáries ocorridas nos estados do Piauí, Pernambuco, Paraíba e Ceará endossam uma preocupação global. A Asociación de la Encuesta Mundial de Valores levantou um dado preocupante: em 17 dos 41 países analisados, pelo menos um quarto da população acredita ser justificável um homem bater em sua esposa.

É considerada violência de gênero aquela exercida de um sexo sobre o oposto. Em geral, o conceito refere-se à violência quando o sujeito passivo é uma pessoa do gênero feminino. Neste sentido, também se aplicam conceitos como violência machista e/ou doméstica. Em 95% dos casos de violência praticada contra a mulher, um homem é o agressor.

A situação também é grave no Brasil, que está entre os países com maior índice de homicídios de mulheres no mundo. De acordo com o 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apresentado em 2014, 50.320 estupros foram registrados no ano de 2013. Apenas 35% das vítimas costumam denunciar os criminosos. O medo e o preconceito são os principais motivos da baixa porcentagem de denúncias e retratam um outro importante aspecto do problema: a culpabilização da vítima como justificativa dos casos. “Basicamente, o mecanismo de autojustificação de várias instituições, principalmente aquelas que deveriam zelar pela segurança e pela proteção da mulher, coloca a vítima como culpada. A mulher é responsabilizada pela violência que sofre. Este tipo de postura institucional de tolerância e impunidade não só permite como incentiva o feminicídio”, avalia o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, responsável pelo Mapa da Violência, série de estudos sobre publicados sobre o tema desde 1998.

 

A barbárie em quatro casos 

No Piauí

No dia 27 de maio, quatro adolescentes com idade entre 15 e 17 anos foram agredidas e estupradas por outros cinco jovens no município de Castelo do Piauí, a 180 km da capital Teresina. As amigas foram abordadas quando subiam o Morro do Garrote, ponto turístico da cidade. Os garotos usavam drogas ao lado de Adão José da Silva, 40 anos. “Ele já era procurado por roubo e agora é apontado pelos menores de ter sido o mentor do estupro coletivo", declarou o Secretário de Segurança do Estado, Fábio Abreu. 

As adolescentes foram levadas até um local deserto, amordaças, amarradas a uma árvore, torturadas e estupradas por um período de duas horas. Após isso, foram jogadas de um penhasco. Não satisfeitos, dois dos jovens apedrejaram as apedrejaram. Elas foram encontradas por moradores da região. Para preservar a identidade das vítimas ainda em recuperação, não iremos revelar os seus nomes. Uma das meninas, com o rosto completamente desfigurado, passou por um processo cirúrgico para a reconstrução da face; outra teve o bico dos seios arrancados. A terceira precisou ser submetida a uma limpeza no organismo, devido aos fluidos estranhos encontrados em seu corpo; a quarta garota sofreu várias perfurações de faca. Onze dias após a barbárie, Danielly Rodrigues, de 17 anos, faleceu. Ela teve esmagamento da face e hemorragia interna devido às várias lesões.

Todos os acusados foram encontrados. Os quatro adolescentes estão internados. Adão, que nega qualquer envolvimento no caso, se encontra preso. “A polícia agiu com total certeza de que ele tem participação no crime. Não há dúvidas disto", disse o delegado Geral do estado, Riedel Batista.

Em Pernambuco

Três semanas depois do caso do Piauí, Maria Alice de Arruda Seabra, 19 anos, foi encontrada morta em um canavial na Região Metropolitana do Recife. Após cinco dias desaparecida, o corpo da jovem foi achado com a mão esquerda decepada e o rosto coberto por uma camisa. O assassino confesso era padrasto da vítima, que a criou desde os quatro anos de idade. 

Gildo da Silva Xavier, 34 anos, é operário de construção civil. Na tarde do dia 19 de junho, ele buscou Maria Alice em casa, em Recife, para uma suposta entrevista de emprego na cidade de Gravatá, onde ele trabalhava. O padrasto já havia planejado toda a ação. Primeiro pediu dinheiro ao patrão, alegando que a filha havia sido atropelada. Com a quantia em mãos, alugou um carro. Ainda na empresa onde trabalhava, pegou um frasco de Rupinol, tranquilizante comumente utilizado no golpe conhecido como “Boa noite, cinderela”. Já na capital, revestiu os vidros do carro com uma película escura e então seguiu para buscar a enteada.

Quando ambos já estavam no carro, o padrasto deu um soco em Maria Alice, que fingiu estar desmaiada. Durante o trajeto, a mãe dela ligou para o marido, que atendeu. Foi quando a jovem gritou pedindo socorro. Ele desligou o telefone, começou a espancá-la, deu o remédio e começou a praticar o estupro. Quando percebeu que a moça sangrava muito e estava desfalecendo, Gildo seguiu em direção a um canavial, onde deixou a enteada amarrada. Dali ele seguiu em direção ao estado do Ceará.

Em depoimento posterior, o homem revelou que planejava o estupro desde que Maria Alice tinha 16 anos de idade, época em que o corpo dela começou a mudar. O fato de a jovem ter feito uma tatuagem no punho com o nome do pai, já falecido, foi mencionado como a motivação final para o crime. Quando estava no interior do Ceará, Gildo acessou a internet e viu a comoção em torno do caso e entrou em contato com a polícia para fornecer informações sobre onde estava o corpo. Como não foi encontrado, ele mesmo decidiu voltar e indicar o local. O padrasto será indiciado por sequestro qualificado, estupro, homicídio qualificado por motivo torpe e ocultação de cadáver. "É um monstro, porque era uma pessoa que criou desde os quatro anos, tinha obrigação de cuidar dela. Alice estava buscando o futuro dela, um emprego, e encontrou esse monstro no meio do caminho", disse Gleide Ângelo, delegada responsável pela investigação.

 

Na Paraíba

Um dia depois do desaparecimento de Maria Alice, duas mulheres e um bebê de apenas nove meses foram sequestrados em um bairro de classe média da cidade de João Pessoa. Caroline Teles Figueira, 31 anos, voltava da festa junina da creche do seu filho, ao lado da amiga Glória Silva, 42 anos. Elas estavam paradas dentro de um carro enquanto o bebê era amamentado. Dois homens em uma moto abordaram as vítimas – um deles entrou no automóvel e obrigou Glória a dirigir até a Mata da Usina Santa Tereza, no município de Goiana, já no estado de Pernambuco. Lá as mulheres foram despidas, espancadas e estupradas. Após os atos, um dos criminosos as atropelou e fugiu. O outro homem é suspeito da participação no roubo do veículo, não tendo envolvimento com os demais crimes.

Glória não resistiu e faleceu. Carolina ficou jogada no local até que por volta das 11h do dia seguinte foi encontrada por vigilantes da Usina. O bebê foi resgatado a menos de 10 metros da mãe, com muitas picadas de insetos, mas obteve alta no mesmo dia. Caroline foi internada com politraumatismo e deixou a UTI no final do mês de junho. O corpo de Glória foi enterrado em Campo Formoso, norte da Bahia. Os acusados foram presos pela Polícia da Paraíba. Ivan Pedro da Silva, 43 anos, autor dos estupros e homicídios, possui um vasto currículo criminal. Leonardo José de Sousa, 22 anos, foi apreendido algumas vezes por roubo, ainda quando era menor.

No Ceará

No dia 1 de julho, na cidade de Capistrano, interior do Ceará, duas adolescentes foram estupradas. Luciana Alves de Brito, de 17 anos, foi agredida a pauladas e jogada em um poço, onde foi encontrada morta. A outra menina, de 16 anos, conseguiu fugir do local e chegou ao hospital da cidade ainda com as mãos amarradas e várias marcas de agressão. As vítimas tinham saído com um grupo de rapazes. A sobrevivente disse que os jovens começaram a ficar violentos após consumir bebidas e drogas. No dia 3, a Polícia Militar do Ceará prendeu três adolescentes e dois homens suspeitos de envolvimento no caso. 

Existe explicação?

Não há como desassociar essa problemática de uma cultura historicamente preconceituosa e primordialmente machista. Ana Dilza Maria, coordenadora do Eixo de enfrentamento da violência contra a mulher do Coletivo Feminista Cunhã, destacou o fato de existirem vários avanços nos atendimentos feitos às mulheres violentadas, embora as medidas preventivas ainda sejam embrionárias. “Não adianta estarmos chorando e nos angustiando apenas quando a mídia revela sofrimentos extremos. Precisamos nos indignar com o sofrimento cotidiano: a mulher que ganha menos trabalhando o mesmo número de horas e na mesma função que os homens; a mulher espancada pelo meu vizinho diariamente e eu não me envolvo; as crianças que chegam com vários indícios de abuso”, exemplificou.

Embora cada um dos casos tenha suas especificidades, alguns traços os aproximam. Em três deles os acusados tinham antecedentes criminais; em pelo menos dois (ainda há controvérsias no caso da Paraíba) os envolvidos estavam sob o efeito de drogas. O caso de Maria Alice Seabra foge um pouco ao padrão dos demais – havia uma relação próxima entre ela e o assassino, além do crime ter sido orquestrado há pelo menos três anos. As quatro histórias são marcadas por agressões,
torturas e extrema crueldade. Todos os réus disseram que não tinha a intenção prévia de matar suas vítimas.

O Psicólogo Luan de Assis, que atua com crianças vítimas de violência sexual, tentou traçar um perfil dos criminosos através de uma das correntes da Psicologia. “A Psicanálise enxerga o sujeito como fruto do seu desenvolvimento psicossexual. Em algum ponto de suas fases de desenvolvimento, houve uma falha em sua formação. Esse sujeito então tem uma visão distorcida sobre si mesmo e necessita do uso da força para ter seu objeto de desejo. Isso faz com que ele não lide bem com frustrações e decepções, canalizando muitas vezes em comportamentos agressivos”, explicou. Ele também fez questão de enfatizar a cultura machista como um agravante para os acontecimentos.

A opinião de quem trabalha diretamente com o tema confirma os avanços no combate à violência contra a mulher. Ainda assim, os últimos casos amplificam a necessidade de mais ações contra essa problemática. Dados como o da OMS assustam ao mostrarem que um terço das mulheres do mundo é vítima de abusos. O feminicídio tem formas variadas e precisa ser compreendido em sua complexidade. Situações extremas como as recentes histórias de terror na região são as últimas consequências de pequenos acontecimentos cotidianos. Como a prevenção ainda é precária, os investimentos motivados pela violência de gênero são incalculáveis: gastos com saúde, policiamento especializado, abrigos, segurança e diversas outras medidas paliativas. Uma revolução cultural, ainda tímida, ganha força e surge como uma solução a longo prazo. Enquanto isto não se tornar realidade, ainda surgirão histórias assustadoras como as de Maria Alice, Caroline Teles e tantas outras.


Políticas Públicas e apoio

Desde os anos 70 há avanços e conquistas dos movimentos que lutam por igualdade entre os gêneros. Hoje existem delegacias especializadas, abrigos, associações, ONGs e várias outras instituições com essa finalidade. O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), criado há pouco mais de uma década, busca através do diálogo com vários segmentos da sociedade, ratificar a autonomia e participação das mulheres em todos os âmbitos da vida, promover a igualdade e universalidade dos serviços e benefícios prestados pelo Estado.

No dia 9 de março, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei do Feminicídio, que altera o código penal para prever casos de violência, menosprezo ou discriminação contra a condição de mulher como um tipo de homicídio qualificado, além de pontuar agravantes em casos de gestantes, menores de 14 e maiores de 60 anos e deficientes. A intenção é aumentar o rigor das punições em meio aos altos índices de violência contra as mulheres no Brasil. A Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, destacou que a lei colocou o Brasil entre os 16 países da América Latina a tipificarem o crime contra as mulheres.

 

Reportagem de Luan Matias

Veiculada na edição 104 (Julho/2015) da Revista Nordeste 


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