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Efeitos da Guerra nas moedas: Edemilson Paraná fala à Revista NORDESTE sobre repercussões da nova ordem global

Está disponível para leitura a edição de número 182 da Revista NORDESTE. Um dos destaques é a entrevista, ao jornalista Walter Santos, de Edemilson Paraná. Ele fala sobre as repercussões da nova ordem global a partir da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Confira aqui na Revista NORDESTE

 

‘A hegemonia no campo monetário-financeiro ainda é amplamente estadunidense”, cometa diante da tentativa de se ter moeda e competir com o dólar.

Leia na íntegra.

EFEITOS DA GUERRA nas moedas

 

 

Mais fortes Sanções à Rússia e as pressões junto à China geram indagações sobre modelos financeiros alternativos ao Dólar. Rússia e China já dispõem de sistemas próprios, mas os EUA se mantêm no comando do mundo financeiro

 

Por Walter Santos

 

 

O mundo convive com os efeitos da mais estrondosa Guerra da Ucrânia puxada pela Rússia com milhões de refugiados e muitos mortos afetando fortemente o futuro das economias, mas sobretudo gerando impactos no sistema financeiro global, como analisa o Expert Edemilson Paraná projetando muitas interrogações acerca das imensas repercussões na nova ordem global.

 

Revista NORDESTE – A guerra da Rússia com a Ucrânia gerou sanções em nível nunca imaginado ao país russo e aliados, afetando drasticamente o sistema financeiro dos países punidos. Na sua opinião, como eles – Rússia e aliados- vão sobreviver?

Edemilson Paraná: Aprenderemos sobre isso com o desenrolar da própria situação. É algo imprevisível. E não apenas porque a intensidade, velocidade e modo de aplicação dessas medidas talvez não tenha precedentes na história recente do capitalismo, mas porque a própria natureza da economia global contemporânea é, em si mesma, peculiar. Trata-se uma economia intensamente integrada, que opera por meio de cadeias globais de valor, com nexos estratégicos da produção, circulação e consumo espalhados pelo mundo, e fluxos financeiros interligados em tempo real. Isso claramente impõe um dano econômico grave à Rússia e seus aliados, mas também pode abrir possibilidades ainda não conhecidas de reações e reconfigurações neste campo.

 

NORDESTE – Como especialista reconhecido, quais os efeitos da exclusão de 7 bancos russos do sistema financeiro internacional, o Swift, ainda com a União Europeia considerando excluir também as instituições financeiras de Belarus?

Edemilson Paraná: A exclusão do Swift atrasa e dificulta as transações com a Rússia, mas não as impedem. Então, sim, há um dano relevante, mas ele não pode se superestimado. Na prática, o que a exclusão força é que as instituições financeiras russas negociem diretamente, caso a caso, o sistema de pagamento alternativo a ser utilizado com o eventual parceiro comercial. Então os bancos russos podem, por exemplo, realizar pagamentos por meio do sistema de transferência de mensagens financeiras criado e mantido pelo Banco Central russo desde 2014, o SPFS, sistema, aliás, que já é utilizado atualmente por alguns bancos internacionais – como na Alemanha e na Suíça – que mantém relações com os bancos russos. Alternativamente, a Rússia pode usar também a rede CIPS, criada pelo Banco Central Chinês, para realizar pagamentos transfronteiriços em reminbi. E há ainda outros meios e sistemas alternativos. Então claro que a medida é muito impactante e produz danos bastante significativos, mas, apesar de dificultar, não impede ou inviabiliza as transações russas.

 

NORDESTE – Estrategicamente, ainda será possível e como excluir os países do sistema de pagamentos internacionais a fim de isolar as economias e instituições financeiras envolvidas na guerra na Ucrânia?

Edemilson Paraná: A Rússia tem o segundo maior número de usuários do Swift, atrás apenas dos Estados Unidos. Cerca de 300 bancos russos estão no sistema de pagamentos e transferências internacionais. São as principais instituições financeiras do país. Então é claro que a força e importância dessa exclusão não é pequena. Mas como a imprensa internacional e o debate público tem ido na direção oposta, acho necessário temperar um pouco a nossa compreensão sobre o tema, quanto à gravidade dessa desconexão. Veja, os pagamentos para exportadores de energia russos, como por exemplo a Gazprom – a maior companhia de energia russa – são, em si mesmos, já menos dependentes do Swift porque grande dos pagamentos de compras de petróleo e gás são efetuadas em dólares ou euros nas contas e instalações bancárias da própria empresa. Ainda assim, note, a União Europeia optou por não excluir dois bancos russos do Swift: o Sberbank, maior credor da Rússia, e o Gazprombank; justamente os que garantem o pagamento de petróleo e gás natural que abastece principalmente Alemanha e Itália. Isso sem falar na possibilidade de triangulação de pagamentos se valendo da relação com outros países, algo que o Irã também faz. O Irã, aliás, é um caso interessante de observarmos. Claro que é uma economia menor, menos conectada globalmente e tudo mais, mas ainda assim trata-se de uma economia importante cujos bancos estão, desde 2012, desconectados do Swift, com ativos congelados nos EUA também, além de outras sanções a empresas e outros intermediários financeiros. Bem, isso não impediu o país de realizar pagamentos dentro e fora de seu território se utilizando de instituições financeiras de outros países dispostos a lucrar de algum modo com essas transações. Claro que isso não é fácil, há multas e disputas, complicações, certamente, mas isso não impediu completamente o país de realizar seus pagamentos.

 

NORDESTE – Em 2015, em reunião dos BRICS em Fortaleza, no Brasil, os países membros decidiram criar uma Moeda para rivalizar com o Dólar, que puxa e comanda o maior sistema financeiro. Esta condição é valor utópico ou é perspectiva plausível no futuro do planeta? No que deu, antes, os BRICS criarem seu Fundo de Investimentos rivalizando com o FMI?

Edemilson Paraná: Ainda que isso não possa se desenvolver sem instar certas tensões e conflitos, a ideia de uma arquitetura financeira conjunta dos BRICS é bastante interessante e, no meu modo de ver, viável. No entanto, como é de se imaginar, trata-se de uma construção que, para caminhar, depende, em muitos aspectos, do estado das alianças e dos acordos desses países. Falo, por exemplo, dos aportes no Banco de Desenvolvimento do grupo, da natureza de sua aplicação e composição de carteira, na ampliação ou não de seu raio de atuação etc. E isso tudo, evidentemente, é impactado pelos diversos desafios enfrentados seja pelos países individualmente seja pelo bloco em conjunto. Sabemos que, de 2014 para cá, esses países, particularmente a Rússia no campo externo e a África do Sul e o Brasil no campo, digamos, interno, vêm passando por instabilidade importantes. A Índia também não enfrenta questões simples e a China, bem, está envolvida numa escalada de tensões com os EUA e, nesse quadro, volta suas prioridades para a iniciativa Cinturão e Rota, para assegurar o avanço na Eurásia, para seus investimentos na África etc. Isso tudo dificulta o desenrolar dessas ações conjuntas, não é um cenário fácil para avançar. Em qualquer caso, penso que podemos, sim, ver surgir cada vez mais ações que questionam a hegemonia que existe atualmente neste campo.

 

NORDESTE – Na sua opinião, o que as graves sanções motivaram entre Ocidente e Oriente em termos de convivências reais dos sistemas financeiros globais diante da força absoluta do SWIFT? Há alguma fragilidade em torno deste contexto?

Edemilson Paraná: Dada a importância deste aspecto, é inevitável, ao meu ver, que as grandes tensões geopolíticas se expressem também na dimensão monetário-financeira. Na verdade, o sistema monetário-financeiro internacional, no seu estado atual, não pode ser lido separadamente das transformações nos arranjos de governança – política e econômica – global que emergiram do pós-guerra, suas crises e reconfigurações. Penso que a utilização do dinheiro mundial, o dólar, e do controle sobre os sistemas de transações financeiras e pagamentos globais como armas geopolíticas – pensemos na Venezuela, no Irã, na Rússia – revelam isso de maneira muito concreta. São um indício a um só tempo da força – dada sua capacidade de coerção abrangente e intensiva – e da fraqueza – porque releva tensões e fraturas importantes – da hegemonia atualmente existente neste campo.

 

NORDESTE – O predomínio dos EUA nesta esfera financeira demonstrado com a Guerra da Ucrânia deve estar motivando muitas indagações e reflexões no mundo, em especial na China e Rússia – esta última mais afetada – sobre o que fazer. E agora, quais os cenários possíveis de futuro? O Sr acredita na possibilidade de polarização de Moeda para enfrentar o dólar, como pensou os BRICS?

Edemilson Paraná: Não acho que isso esteja posto concretamente neste momento. Mas é certamente algo que se já não está, possivelmente estará – com ainda mais firmeza e decisão daqui para frente – no horizonte de qualquer país importante, que leve sua soberania econômica e monetária a sério; particularmente aqueles que, por qualquer razão, antevejam pontos de disputa e fricção com os interesses dos EUA e seus aliados.

 

NORDESTE – O fato é que o mundo já convive com criptomoedas e/ou valores e sistemas digitais em ascensão. Onde esse componente afetará o futuro do sistema financeiro global?

Edemilson Paraná: A digitalização das finanças, em geral, e a difusão de inovações tecnológicas no campo das transações monetárias e financeiras, em particular, vieram para ficar. Quanto a isso, não há muita disputa. A questão é como e em que direção isso vai se desenvolver e, em seguida, se estabilizar parcialmente, que configuração, em suma, isso vai assumir. Eu vejo duas tendências. A primeira é uma entrada cada vez maior de atores e empresas de fora do setor propriamente financeiro neste campo. A segunda é uma ação mais ativa dos Estados, seja em termos de regulação, controle ou promoção nos seus próprios termos, neste processo. Isso, claro, tende a abrir todo um conjunto de novas disputas, sobretudo porque cada vez mais agentes se convencem de que essa é uma dimensão estratégica da reconfiguração econômica pela qual estamos passando.

 

NORDESTE – A China, em tese, se encaminha para liderar a economia global, mas conseguirá diante desta fragilidade, diante da fortaleza do SWIFT?

Edemilson Paraná: É uma pergunta que a China, muito cautelosamente, como lhe é de costume, tenta responder na prática, buscando promover ativamente a internacionalização de sua moeda e a difusão de sistemas de pagamento alternativos. É certo que, como em outras áreas, o país avança firmemente. No entanto, a hegemonia no campo monetário-financeiro ainda é amplamente estadunidense. Em termos de sua dominância global, esse é um dos campos em que a China se encontra ainda muito atrás dos EUA.

 

 

Edemilson Paraná é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). É professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC e do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados sobre as Américas da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisa temas concernentes à relação entre finanças e tecnologia no capitalismo contemporâneo. Entre outros trabalhos é autor dos livros “A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional” (Insular, 2016) e “Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico” (Autonomia Literária, 2020).


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