NORDESTE

Em entrevista exclusiva, carnavalesco Milton Cunha expõe de forma filosófica a realidade cultural brasileira diante de Bolsonaro e seus retrocessos

A edição de nº 187 da Revista NORDESTE publica uma entrevista exclusiva com Milton Cunha, um dos mais importantes críticos de Carnaval e das artes no Brasil. Em conversa com o jornalista Walter Santos, Milton Cunha aborda o futuro das festividades de Momo no Brasil, e, de forma filosófica, e a realidade da cultura brasileira.

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Leia a entrevista com Milton Cunha, abaixo, na íntegra:

Como as artes e o Carnaval são força da criatividade brasileira a não aceitar amarras

Milton Cunha, um dos mais importantes críticos de Carnaval e de Artes, expõe de forma filosófica a realidade da Cultura brasileira diante de Bolsonaro e seus retrocessos

Por Walter Santos

Embora os veículos de comunicação do País não deem visibilidade, há em curso forte movimento de entidades como a Fenasamba [Federação Nacional das Escolas de Samba] defendendo fortes mudanças nas políticas públicas voltadas para as artes, a cultura e os artistas. Quem acompanha tudo isso é o crítico de Carnaval e de Artes, Milton Cunha, que em entrevista exclusiva opina sobre tudo. Leia:

Revista NORDESTE – Estamos vivendo um momento diferenciado onde a Arte e a Cultura estão no alvo dos candidatos a presidente levando segmentos de análise a projetar realidade atual de retrocessos e de possíveis avanços, a depender do resultado das eleições. Como o Sr. encara esta conjuntura?
MILTON CUNHA – A cultura ela dá condições para consciência crítica dos cidadãos, então os governos que não são alinhados com a cultura, eles pretendem uma população burra, uma população sem os mecanismos de análise, de comparação, desse universo de prazer, beleza, utopia e distopia da arte. Então, a cultura interessa a quem pretende um país, um estado, uma cidade potente, pulsante, com aplausos, vaias, concordâncias, discordâncias. Ao ver a direita conservadora, neopentecostal, preconceituosa, pregando a demonização da cultura da arte, isso não me surpreende porque a tirania das ditaduras, não é, ‘quem não dançar conforme a música, não é direito, não é bom, não vai para o céu e não se salva’, então é isso não me surpreende porque o dialógico, exercício do pensamento democrático, do argumento, contra-argumento, réplica, tréplica, isso é um exercício de cidadão que interessa a todos nós na democracia.

NORDESTE – O que está na essência?
MILTON CUNHA – Na verdade é o embate entre um único pensamento obtuso, cego, e a pluralidade de possibilidades. Essa sociedade que se pretende só um tipo, não é de arte, de cultura, ela não me interessa, então eu volto para o lado de lá que é a democracia, as múltiplas visões de mundo.

Milton Cunha e o jornalista Walter Santos em recente encontro – Foto: Revista NORDESTE

NORDESTE – Na sua opinião, por que as artes e os artistas resistem à realidade atual conduzida por Bolsonaro mesmo sendo alvo do conservadorismo atual?
MILTON CUNHA – A arte existe porque ela é, se impõe, a arte ela é uma expressão humana impossível de ser freada, a inspiração vem do caos, ela vem da dureza, da dor, da morte. A inspiração ela reorganiza, arruma, ela desarruma, a dor, então a inspiração artística, a inspiração cultural ela é eterna mesmo nos períodos mais sombrios. A expressão da música, da dança, da arte, do teatro, do desfile da escola de samba, dos blocos. O que faz o homem e a humanidade é justamente os nossos grupos serem dotados da expressão. Não há jeito de refrear isso, a arte se impõe nos potes, nos utensílios, nas artes plumárias, então é uma expressão de de rito, de existir. Sempre haverá arte, sempre haverá cultura, porque como expressão individual e grupal, isso é maior do que o governo, isso é política de estado, isso não depende de um governante ou outro. Depende por quatro anos, seis anos, um período, mas isso existe para além da tirania. Isso é maior.

NORDESTE – Dentro de uma visão contemporânea e sistêmica, qual o papel das artes e dos artistas no fomento e sobrevivência de muitos setores da vida nacional? Qual o tamanho deste cenário?
MILTON CUNHA – Os artistas carregam a luz, a esperança, o discurso do belo. O belo que inclui o feio. Então, nesse embate estético, o artista traz a o outro, lado a outra possibilidade então o artista é o contraponto, as artes são mais uma possibilidade, a arte está sempre abrindo uma nova janela, um novo voo para olhar, porque a gente achava que só era aquilo, e aí a arte vai dando as camadas.

NORDESTE – Qual a grande missão?
MILTON CUNHA – A função é continuar revelando mundos, glórias, fracassos. O artista, a arte é o sopro, o respiro, é suspensão. Você tem este real tão cartesiano, naturalista, tão acadêmico, tão canônico… e a arte potencializa o sonho, todos nós somos dotados do sonho, e a gente encontra o sonho na arte, na cultura, o canto dos anjos, os pincéis, os demônios, a arte vem para produzir respostas veementes, contundentes, da população em relação à sua trágica existência.

NORDESTE – Pelo seu filtro apurado, por que o Rio é esse cenário de tantos conflitos e mortes à base do poder miliciano? Onde podemos chegar? O Carnaval e escolas envolvidos…
MILTON CUNHA – O Rio de Janeiro é um tambor de ressonância porque, como foi a capital do império e foi a capital do reino de Portugal e algarves, foi a capital da República, todas as nossas dores e delícias se concentram lá, porque 150 anos de capital e acaba que índios, negros e brancos ressoam ali o conflito, a glória, tá tudo ali. Essa direita, esse poder miliciano é espalhado por que essa milícia se manifesta de muitas formas, pensamento, censura, bala, revólver, cobrança de passagens, pedágio… eu vejo a milícia como a tentativa do controle, e claro numa cidade libertina como o Rio. Pensa aí, Leila Diniz de biquíni, grávida, na praia nos anos 60, pensa em Dercy Gonçalves nos anos 1930, 40, 50, na Praça Tiradentes com a carteirinha dela de prostituta, porque atriz, era. Rogéria, Valéria, Secos e Molhados… pensa em todo o avesso, o Rio é o avesso é porque tudo pode, aí você vê o crescimento nos últimos 30 anos do poder controlador que já era poder controlador lá nos anos 80 com a sessão da Aids e o discurso da ‘peste gay’, a gente via ali o ovo da serpente, o embrião da maldade se formando, as pechas, o desprezo, o horror.

NORDESTE – Como nesse contexto ainda haver constatação do modelo social próprio do carioca?
MILTOM CUNHA – Para um lugar tão feliz, solto, cheio de si com o contrário, é claro que vem estabelecido o oficial tentando dizer ‘não, a vida é assim não, preciso proteger vocês de vocês’. Permissividade e controle oficial e não oficial, o corpo grotesco e o corpo resguardado, então, esses opostos estão no Rio, no discurso do carnaval.

NORDESTE – Como definir filosoficamente o carnaval, as escolas de samba…
MILTON CUNHA – A carnavalização, segundo Mikhail Baknin, passa por apresentar as entranhas da contradição. Na vida você sacaneia o bispo, padre, governador, o prefeito e o presidente. A estrutura narrativa do carnaval e da escola de samba, são duas coisas diferentes, mas que se juntam nessa possibilidade de explicar os assuntos de forma outra, de forma alegórica. Claro que sendo o Rio a capital do carnaval toda a contradição vai se manifestar ali.


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