INTERNACIONAL

Linguista analisa oratória de Trump

Rosto vermelho. Gestos bruscos. Seu tio insuportável após meia dúzia de cervejas. É difícil escolher palavras que definam o discurso de Donald Trump, mas qualquer um que não mude de canal durante o horário político já sabe que ele não fala como a média dos políticos tradicionais — e essa é parte da fórmula que o levou à vitória.

A GALILEU conversou com Eni Orlandi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre as linhas e entrelinhas de Trump. A pesquisadora, que introduziu a análise do discurso no Brasil na década de 1970, é autora ou organizadora de mais de 35 livros sobre o assunto — um deles vencedor do prêmio Jabuti de ciências humanas em 1993.

Música para os ouvidos

As ideias de Trump não são claras. Ao encadear seus pensamentos, ele é impreciso. Suas respostas a jornalistas não seguem uma linha de argumentação visível, não veiculam ideias com começo, meio e conclusão lógica. Suas frases, por outro lado, são curtas e certeiras, pequenos blocos de informação de fácil apreensão que costumam terminar com uma palavra impactante.

“Essa é uma característica da argumentação dele. Também é uma característica da língua”, explica Orlandi. “Toda língua tem um certo ritmo, uma certa entonação. Ele argumenta muito bem, e não é no conteúdo. No ritmo da frase, uma palavra ganha entonação conforme o lugar que ela ocupa. E Trump sabe se aproveitar muito bem da curva melódica do inglês.”

Em um vídeo publicado no YouTube, o usuário Nerdwriter1 analisa a reação do então candidato a um entrevistador que lhe questiona sobre suas posições xenofóbicas contra o povo muçulmano. Você pode assistir à versão completa no link acima. A GALILEU traduziu um trecho.

“Olhe só Paris. Veja o que aconteceu em Paris. Aquelas pessoas não vieram da Suécia, OK? Veja o que aconteceu em Paris, olhe o que aconteceu na semana passada na Califórnia, com 14 pessoas mortas, outras pessoas vão morrer, elas estão gravemente feridas. Nós temos um problema real. Há um tremendo ódio lá fora. E não dá para resolver um problema se você não souber qual é a sua raiz. (…) As pessoas dizem: ‘Bem, Trump tem razão. Nós temos que ir direto ao problema.’ Algumas pessoas me ligaram e disseram ‘Trump, você nos fez um tremendo serviço.’ Porque nós temos, sim, um problema.”

No início, a palavra “Paris” encerra três frases seguidas de formulação e significados semelhantes, como um refrão. “Problema” funciona de maneira parecida. Aparece quatro vezes, sempre em tom conclusivo, sempre em companhia de palavras como “real”, “resolver”, “raiz”, “direto”. Mais importante ainda é o fato de que não há um problema, mas de que nós temos um problema. Trump e o ouvinte. No mesmo barco.

“Sua maneira de falar não só capta e prende a atenção de quem ouve como também apela para a memória do eleitor", explica a linguista. "Ele quer produzir um efeito. O que interessa não é o que ele está dizendo, mas o efeito que ele produz. Há palavras que ressoam no ouvinte”.

“Torne a América grande de novo”

Manipular palavras do jeito certo, porém, não basta na hora de ganhar uma eleição. Orlandi explicou à GALILEU que as próprias palavras são pequenos caminhões, e suas caçambas estão lotadas com cultura e ideologia. 

“Há uma grande América na cabeça dos americanos que eles querem ver realizada. Quem faz parte do partido X atribui o sentido X a uma palavra", afirma Orlandi. "Quem faz parte do partido Y vai atribuir outro sentido à palavra, sem dúvida. Isso se chama formação discursiva, e é puramente ideológico."

A formação discursiva é essencial para a análise do discurso. É ela que determina o que pode e deve ser dito por alguém quando alguém assume uma posição política, um lado em uma situação histórica.

Isso significa que uma palavra como “coxinha” ou “petralha” não tem sentido em si mesma, e não é você que atribui significado a ela. É algo maior do que isso: ela ganha sentido conforme o lado da disputa em que você está. O que você diz é uma versão sonora ou escrita do que você pensa, e você, é claro, não pensa sozinho.

“Ele fala barbaridades sobre as mulheres, por exemplo. Mas quem está do lado dele acha que ele fala a verdade. Veja só que coisa. É porque existe uma coisa chamada ideologia. Sua relação com a realidade passa pelos efeitos de um imaginário produzido por posições políticas”, explica Orlandi. “A imagem que eu faço de um negro, o sentido de ‘negro’ foi construído em mim pelo imaginário social em que eu vivo. Eu mesma, sendo mulher, às vezes me pego sendo machista. Não é minha visão de mulher, mas minha condição social de mulher.”

Em outras palavras, a sua definição de uma palavra não é sua, mas é o resultado da maneira como tudo que te rodeia acaba depositado em você — depositado tão fundo, claro, que você se esquece que tudo veio de algum lugar e passa a atribuir suas visões a si mesmo.

É assim que Trump pode dizer que “tornará a América grande de novo”. Trump sabe muito bem qual projeto de Estados Unidos está por trás de seu “grande” — e cada um de nós, imersos em formações discursivas diferentes, encaramos a palavra “grande” de uma maneira diferente.

É só sarcasmo, mas eu gosto

Para a professora, o deboche também foi uma peça-chave na campanha. “Há maneiras de ser populista. O discurso da esquerda populista, nas últimas décadas, é sério. Chega a ser raivoso, combativo. Apelando às vezes para polêmicas exacerbadas. E há o populismo de direita, com várias modalidades. Uma delas, a praticada pelo Trump, é a do galhofeiro, o irônico. É um populismo bem-humorado. Ele blefou muito. A ironia não se compromete com a verdade e a mentira, ela está acima disso”.

O discurso de Hillary, por outro lado, é sério, sóbrio e comprometido com a democracia. Trump usa a estratégia da ironia ao seu favor. Segundo Orlandi, Trump se esquivou de acusações de sonegação de impostos ao rir da própria tragédia em vez de apelar para as retratações sérias costumeiras na vida política. “O que ele falou foi quase um ‘Olha, eu consegui. Você também não gostariam de conseguir enganar?’ Claro, ninguém gosta de pagar imposto. E ele pode falar porque é em tom de brincadeira, e não de coisa séria.”

Galileu


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