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Matéria Exclusiva: Taxa é cobrada desde 1831 para terrenos de marinha

Matéria de Grazielle Uchôa
 

Resquícios do Império 

Taxa cobrada desde 1831 para ocupação de terrenos de marinha vigora até hoje e incita discussões sobre sua legitimidade. Além da União, herdeiros da família real e a igreja católica também arrecadam a receita do Laudêmio

Foi ainda no primeiro ano de Dom João VI no Rio de Janeiro, quando transferiu a corte portuguesa para o Brasil, que o Imperador instituiu o Laudêmio que, ao contrário do que se pensa, não é um imposto. Trata-se de uma taxa a ser paga à União em transações com escritura definitiva de compra e venda de terrenos de marinha, cujo conceito foi definido por decreto imperial ainda no século XIX e atualizado em 1946.

A taxa ainda é desconhecida por muitas pessoas. Mas, especialmente após a temporada de férias de verão, quando aumenta o interesse pela compra de imóveis litorâneos, é que o Laudêmio passa a ser objeto de interesse, curiosidade e até questionamento.


O representante comercial pernambucano Edmilson Cunha (49) mora em João Pessoa (PB) há 20 anos, mas decidiu comprar um apartamento para passar os finais de semana em sua cidade natal, Recife. Ele comprou o imóvel na planta no bairro litorâneo de Boa Viagem e se surpreendeu quando, ao término da construção, para pegar a chave do apartamento, teve que pagar R$16.500 reais referentes à taxa. “Eu fui informado de que se tratava de um terreno de marinha, mas não imaginei que fosse me custar tanto. Tive que correr atrás dessa quantia exorbitante rapidamente”, conta.


De acordo com o Decreto-Lei nº 9.760/1946, são terrenos de marinha aqueles identificados a partir da média das marés altas do ano de 1831. “Traçou-se uma linha imaginária horizontal cortando a costa brasileira. A partir dessa linha (preamar-médio), todo terreno que estiver a 33 metros dela, no sentido do litoral brasileiro (terra) será considerado de marinha, portanto, da União”, explica o especialista em Direito Civil, Gilberto Maistro Júnior.


Ele esclarece que essa medida foi tomada como instrumento de defesa nacional, já que a invasão pelos mares costumava ser o principal formato bélico dos séculos passados, mas acredita não ser mais plausível. “Ela não mais emerge como algo que realmente se justifique, quer pela mudança dos tempos e as atuais tecnologias bélicas, quer pelos demais meios administrativos postos à disposição do Estado em casos de necessidade de ingerência sobre o patrimônio particular em situações críticas de segurança”, afirma.


Professor da faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), Gilberto diz que para entender o Laudêmio é preciso compreender a enfiteuse, figura do direito definida no Código Civil de 1916. Segundo o professor, ela ocorre quando uma pessoa (senhorio direto) celebra um contrato com outra (enfiteuta) permitindo que esta outra tenha o uso daquele bem, muitas vezes de forma perpétua, mediante pagamento de uma taxa anual chamada foro. Apenas quando a enfiteuta decide vender, ou seja, alienar os seus direitos de usufruir do imóvel, é que ela deve pagar ao senhorio um percentual sobre o domínio do imóvel, o laudêmio, que corresponde a 2,5% quando da enfiteuse entre particulares. No caso dos terrenos de marinha, em que o senhorio direto é a União, o regime jurídico estabelece o aumento da taxa para 5%.


De acordo com a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão responsável pelas demarcações dos terrenos e pela arrecadação das taxas, até novembro de 2014, 561.512 imóveis pertenciam à União no Brasil, sendo 466.832 deles terrenos de marinha. O Nordeste representa quase metade desse número, com 230.518 imóveis, sendo 195.627 deles terrenos de marinha. De janeiro a novembro 2014, a SPU teve arrecadação nacional de R$ 270.239.801,44 reais com o Laudêmio. Os imóveis ativos no Nordeste representam 45% dessa quantia.

Outros beneficiados

A cobrança do Laudêmio está envolvida em discussões sobre o destino das receitas arrecadadas que precisam ser melhor esclarecidas. Muitos acreditam que a taxa é direcionada à antiga família real, à Marinha ou à igreja católica, o que não é verdade. No caso dos terrenos de marinha e seus acrescidos, o Laudêmio arrecadado tem como destino os cofres da União.


O advogado Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues, autor do livro “Curso de Terrenos de Marinha e seus acrescidos”, esclarece que é importante prestar atenção na preposição “de”. Ou seja, os terrenos de marinha não são terrenos da Marinha do Brasil, portanto não são destinados aos seus cofres.


Segundo Segundo Gilberto Maistro Júnior, no caso dos herdeiros da família real e da igreja católica, únicos casos de enfiteuse particular no país, eles de fato podem ter um contrato de enfiteuse/aforamento e recebem as taxas devidas quando ocorre a transferência de imóveis em que são o senhorio direto. Mas, isso não ocorre quando se trata dos terrenos de marinha. “Muitas dessas terras foram transferidas à igreja pela coroa portuguesa à época da colonização, a fim de dar a elas caráter produtivo e contribuir para o fomento dos costumes e das atividades religiosas. O mesmo ocorre com relação aos herdeiros de Dom Pedro II, não há participação da família imperial brasileira no recebimento de qualquer quantia paga à União, fruto de aforamento. Eles recebem com relação aos imóveis nas relações em que são senhorios diretos. Nesse caso, a quantia é paga à Companhia Imperial de Petrópolis”, elucida.


Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues lembra que esses contratos são regidos pelo Código Civil Brasileiro, em vigor desde 2003, o qual proibiu a constituição de novas enfiteuses/aforamentos, mas garantiu a manutenção das já existentes no país. “Os imóveis de propriedade da antiga família real brasileira e da igreja católica, que foram submetidos a um contrato de aforamento, não se confundem com os terrenos de marinha, por isso é que a renda obtida com o Laudêmio é dos proprietários desses imóveis aforados (antiga família real e igreja)”, complementa o advogado.

Taxa é questionada

“A ideia de terrenos de marinha caducou, perdeu sua finalidade. Se num passado distante teve seus méritos em contribuir na proteção da costa marítima brasileira e das áreas alagadas dos manguezais, hoje é destituída de qualquer propósito. A não ser, claro, a cobrança de taxas aos proprietários de imóveis”. É o que afirma a Associação S.O.S Terrenos de Marinha, com sede em Recife (PE). Para os componentes da instituição, as demarcações dos terrenos são equivocadas e há ilegalidade nos índices de reajustes anuais das taxas e foro e a inclusão de benfeitorias (apartamentos, salas, etc.) como objeto de taxação. Em 2011, a S.O.S Terrenos de Marinha conseguiu na justiça a suspensão de todas as cobranças de foro, laudêmio e taxas de ocupação em terrenos de marinha na cidade do Recife.


Gilberto Maistro Júnior afirma que existem diversas ações judiciais individuais e coletivas em andamento e que são muitos os questionamentos em relação às cobranças dessas taxas. Segundo o especialista, muitos defendem que a demarcação dos terrenos de marinha é realizada de modo equivocado, ignorando critérios cientificamente mais adequados. “Alguns afirmam, ainda, que os ajustes anuais efetuados pela SPU são ilegais e que não se poderia admitir a atualização dos foros e taxas de ocupação pelo valor do imóvel, sendo o caso apenas de atualização monetária. Noticia-se também a cobrança de laudêmio, foro e taxa de ocupação sobre o valor das benfeitorias construídas sobre os terrenos de marinha, o que não seria admissível. Aqui, entrariam os casos de laudêmios cobrados de apartamentos, salas etc, pelo valor da própria unidade”, relata Gilberto.


Edmilson Cunha acredita que o prédio em que comprou seu apartamento não deveria ser taxado, já que se encontra a mais de 1 km da praia de Boa Viagem. O advogado Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues diz que o representante comercial deve contratar um profissional do direito especializado no assunto para saber se a demarcação do terreno foi feita regularmente.


Ele lembra, contudo, que a linha da preamar média considerada para fins de medição da faixa de 33 metros não é a atual, mas sim a do ano de 1831. “Outro fator importante é verificar se o cálculo do laudêmio foi feito de forma correta, pois muitas vezes o imóvel pode estar construído parte sobre terreno livre de ônus e parte sobre terreno de marinha, portanto os 5% não incidem sobre 100% do valor do imóvel. Há de se considerar ainda o tipo de transação feita, algumas não autorizam a cobrança de laudêmio pela União. E famílias que recebem até cinco salários mínimos estão isentas do pagamento”, alerta o advogado sobre algumas variantes a serem consideradas antes de se questionar a cobrança.


Para Rodrigo Marcos, o fim da cobrança do Laudêmio seria elogiável. “Na minha opinião, tudo que puder ser feito para desonerar o cidadão brasileiro, que já tem que arcar com uma alta carga tributária, é extremamente válido e relevante”. O advogado, entretanto, acredita que posicionar o Laudêmio como algo arcaico, para, com isso, combater a cobrança, é equivocado. “É até mesmo perigoso, tendo em vista que a maioria dos institutos do Direito que conhecemos hoje, como o da locação, arrendamento e comodato de imóvel, têm origem no antigo Direito Romano”, conclui.
 


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