ARQUIVO NORDESTE

OPINIÃO: LULA-ALCKMIN: UM PASSO ATRÁS, DOIS NA FRENTE?

Rubens Pinto Lyra (*)

“Os militantes mais lúcidos e melhor intencionados de minha geração revelaram-se, em virtude de concepções ultrapassadas, quase cegos durante as tormentas”.

Victor Serge, revolucionário  franco-russo   In  Mémoires d’un révolucionnaire. Paris, Grasset.   

 

A práxis, de per se, contribui poderosamente para o conhecimento do processo político em geral, das suas contradições e potencialidades, mormente quando os que a exercitam são políticos argutos, experimentados e sagazes.  Mas, se só isso bastasse, não se valorizaria as Ciências Sociais, a Filosofia e a História, como instrumentos essenciais para o conhecimento mais aprofundado do referido processo.       

 

Contudo, até mesmo os que nelas se movimentam com grande desenvoltura, podem tropeçar em escolhos de natureza ideológica, conforme lembrou o grande Victor Serge,  mormente em uma “conjuntura  tormentosa”  como é a atual,  não conseguindo  enxergar mais profundamente  as questões nela  embutidas (1978).   

 

 

Assim, os posicionamentos “à esquerda da esquerda” não podem elidir os ensinamentos da  história recente. Ela nos mostra que há momentos ou períodos dramáticos experimentados por muitos países que levam os seus partidos e suas lideranças políticas mais eminentes, de posições político-ideológicas bastantes distintas, até mesmo antagônicas, a dar uma trégua nas suas diferenças,  com vistas ao enfrentamento do inimigo comum, interno ou externo, que ameaça a paz e o progresso social .

                   

Depois da Segunda Guerra Mundial, na Europa, constituíram-se na França e em diversos outros países democráticos desse continente,  governos de salvação nacional, destinados à reconstrução desses países, destroçados pela guerra.               

 

Esses  governos do pós-guerra  eram compostos por partidos que iam  da direita  à esquerda do espectro político. Na França, o aguerrido Partido Comunista – o mais poderoso do país, durante parte da década  de cinqüenta do século passado – integrou o governo de União Nacional  representado  pelo seu maior expoente: Maurice Thorez, Secretário Geral desse partido , investido nas funções de Vice-Primeiro Ministro (COOK: 2008).                O mesmo ocorreu em  vários outros países  que resistiram ao nazi-fascismo na Europa,  e essa “co-habitação” em nada comprometeu, na sequencia, a combatividade e firmeza dos comunistas, especialmente franceses, na  sua luta em prol dos interesses da classe trabalhadora. 

                                          

CASO BRASILEIRO

 

Aqui no Brasil,  causou surpresa o anúncio de uma provável chapa Lula- Alckmin,  representando, cada um deles, lideranças de peso nas suas respectivas áreas de influência.     Como nos exemplos anteriores, não se trata de ”uma guinada à direita”, com a  esquerda assumindo o projeto neo-liberal, como muitos temem (TRANJAN:2021). Mas, sim, de uma escolha  política incontornável,  que tem como objetivo maior fazer com que o país dê  passos à frente, garantindo a derrota das hostes neofascistas, e o conseqüente retorno à normalidade democrática.                                       

Em Israel, acaba de se constituir um governo ancorado em aliança ainda mais improvável, pois envolve  partidos antagônicos que vão da extrema direita à esquerda. Ela ocorreu porque era preciso derrotar um inimigo comum, o então Primeiro Ministro Netanyahu, pelo perigo de convulsão social que representava sua permanência no poder (ISRAEL: 2021).                                           

 

Em que pese tratar-se de momentos históricos e conjunturas políticas diversas, a questão a ser enfrentada, no momento atual do Brasil, é a mesma que foi posta na Europa,  no pós-guerra, e  alhures: qual estratégia política eleger, que alianças firmar  para reconstruir  o país e “normalizar” a democracia?                                   

 

Dito de outra forma: como enfrentar a devastação sócio-econômica, ambiental e política levada a cabo pelo autoritarismo neofascista encarnado no                             bolsonarismo, inimigo número um da Nação, no poder, e que tem como base de sustentação uma legião de fanáticos, mas também importantes setores do establisment econômico, político e militar?      

                                 

Para Tarso Genro, trata-se de “colocar a unidade pela democracia em torno da repulsa contra a extrema-direita violenta e golpista, e sua “reconstrução ”dentro da ordem” (2021).        As forças populares, durante todo o período do governo neo-fascista, mostraram-se incapazes de reagir à altura. Não será agora, às vésperas das eleições presidenciais, como pretendem respeitáveis intelectuais e lideranças de esquerda, que elas poderão, sozinhas, derrotar o bolsonarismo.  

                                    

Não é possível fazê-lo no estado em que se encontra a esquerda, combalida, desesperançada  e sem programas e palavras de ordem até agora  capazes de mobilizar o seu potencial de luta. 

                                          

Sou dos que sempre criticaram  o distanciamento do PT de suas bases, e, especialmente na atual conjuntura,  sua incapacidade de  conferir destaque a bandeiras e palavras de ordem que denunciem a fome e  o descalabro social que a alimenta.  Será que essa gritante omissão não teria a ver com as comoventes indagações de Bucci: “como explicar o nosso desprezo pelo sofrimento alheio? Por que não fizemos nada, quando podemos fazer tudo? “(2021).                                           

Os petistas também não foram capazes de mobilizar a sociedade, principalmente assalariados e socialmente excluídos para exigir que as grandes fortunas, as corporações financeiras e os setores mais abastados das chamadas “classes produtivas” dêem sua contribuição, através de taxações compulsórias, ao soerguimento do país.               

 

Mas não podemos chorar sobre o leite derramado, tampouco desconhecer que  as urgências do momento não nos permitem sonhar com a tomada instantânea  de  consciência e com a  mobilização imediata das “massas”, de modo que estas possam, sozinhas,  garantir a vitória de Lula, na sequencia, a governabilidade.                        

Como lembra jornalista da Folha: ”0 sábio é aquele que distingue a realidade da fantasia. O impossível, porque distante, mas realizável, porque plausível (Curado, 2021).        Tarso Genro observa, com muita pertinência, que, até o momento,  foi principalmente o  Supremo Tribunal Federal que funcionou como “dique de contenção” do bolsonarismo, fazendo-o recuar nas suas investidas contra  a autonomia dessa Corte e na sua ameaça de não mais se comportar “nas quatros linhas da Constituição”.                   

 

Somente podemos deplorar que o autoritarismo esteja incrustado nas formações de esquerda, cada uma delas tendo um cacique que toma as decisões mais importantes no seu âmbito.  Mas também, nesse aspecto, não é possível erradicar em um átimo uma cultura partidária que favorece o personalismo, que se consolidou durante muitos anos e se exacerbou com a ascensão da esquerda ao poder.                       

 

Portanto, será a nível político-partidário, de cima para baixo, na “malsinada” superestrutura, que a definição da chapa presidencial irá ocorrer – se é que o martelo já não está batido.                                            

 

Ainda assim, entendemos que a união do centro democrático com a esquerda, representados por Lula e Alckmin, é a estratégia mais indicada, por apresentar uma chapa praticamente imbatível, e pelo que ela representa para a estabilidade do próximo governo.       

 

Isso não significa que se deva assistir, impassível, ao desenrolar das negociações entre os dois candidatos. Todos os setores interessados que o novo mandato do Presidente Lula redefina as políticas públicas, preservando o interesse nacional, os das classes subalternas e o papel ativo do Estado, precisam se mobilizar para que esses temas sejam contemplados em  acordo programático transparente e  executável?                       

 

Não obstante, cultivar ilusões, como vem fazendo Lula, ao prometer que  seu novo mandato corresponderá a avanços nas políticas sociais e em outros aspectos de seu futuro governo, somente poderá resultar em prejuízo para a credibilidade dos novos mandatários, e para a governabilidade de sua gestão.   

 

É difícil saber quais serão esses avanços se o próprio Lula , em jantar com Acklmin, declarou que “o país que eu vou pegar em 2022 é pior que o país que peguei em 2003” (LULA:2021).                                   

 

Com efeito, para evitar retrocessos, há um preço a pagar, já que os recursos orçamentários destinados ao soerguimento do país estarão muito aquém do que se necessitaria para produzir os avanços cogitados pelo ex-Presidente. Esse é o passo atrás inevitável para que, mais adiante, sejam dados muitos passos à frente                    

 

Azevedo tem razão em dizer que “não há razão para assombro” pois que composições aparentemente  exóticas  já ocorreram e vêem ocorrendo mundo afora (França, Israel, Chile, Itália etc), não faltando exemplos históricos de alianças bem sucedidas entre progressistas e conservadores. O próprio Lula fez alianças para governar com partidos e lideranças adversárias históricas do PT (AZEVEDO: 2021).                                   

 

Se o acordo com Alckmin interessa eleitoralmente o PT- inclusive porque tornaria praticamente certa uma vitória no primeiro turno – o mais importante é que ele facilitaria a condução do próximo governo. Desafio maior do que o de vencer o pleito,será administrar o país em caso de vitória, em especial a economia (SCHWARTSMAN:2021)           

 

Mas não se pode desconsiderar  dois sub-produtos, nada desprezíveis,  da aliança Lula-Alckmin: a modificação da imagem do PT perante a opinião pública,  com a desmoralização  da narrativa delirante segundo a qual  esse partido pretenderia “comunizar o país”, e a conseqüente desagregação da “terceira via”.                               

 

Intuindo o que poderia ocorrer, ninguém menos de que Michel Temer dá a sua involuntária contribuição para o enterro sem glória do discurso  maniqueísta hipocritamente assumido  pela suposta Terceira Via, que não passa de  linha auxiliar do bolsonarismo.

 

Eis o que disse sobre Lula: “é pragmático e homem de diálogo”, afirmando “não  se lembrar de ver empresários reclamando do petista quando ele governou o país” (BERGAMO:2021).           

 

Com  a aproximação de Alckmin, ínclito representante do centro, em direção à esquerda, a “terceira via” recebe a sua última pá de cal, restando claro perante todos que o embate se dará entre a extrema-direita bolsonarista e as forças políticas democráticas de maior expressão, em torno da chapa Lula-Alckmin. Assim, Lula, o ‘bicho-papão’ que a direita quis demonizar,como suposto representante do extremismo à esquerda, passa a ser, no imaginário do eleitor e na vida real, a única opção para  os verdadeiros democratas.           

 

Para concluir: a esquerda poderá,  para  desmentir de forma ainda mais cabal a construção fantasiosa  sobre os perigos de um  governo de esquerda, divulgar experiências exitosas como  a levada a cabo em Portugal.                            

Nela, as responsabilidades governamentais foram conferidas ao Partido Socialista  após firmar com partidos políticas à sua esquerda um compromisso escrito sobre pontos essenciais das políticas públicas a serem lmplementadas.                   

 

Lá como aqui, a direita procurou desmoralizar o que se revelou a mais exitosa experiência governamental da esquerda portuguesa, antes de ela ocorrer, denominando a sua aliança de Geringonça. Não deu certo. Esse nome passou a ser usado pela própria esquerda, e tornou-se sinônimo de acordo política exitoso.                               

Nesse período, Portugal teve um crescimento econômico maior do que a média das economias européias; a confiança interna e externa dos investidores atingiu um máximo histórico. Além disso, a taxa de desemprego caiu de metade nos seis anos de governo socialista:

 

lembramos, com o indispensável e renovado apoio do que aqui no Brasil seria denominado de extrema-esquerda. Por último: nesse período, o salário mínimo subiu quarenta por cento, tendo a taxa de pobreza e exclusão social caído para abaixo da média quer da União Européia, quer da Zona Euro (CÉSAR: 2021).                           

 

Como estamos à beira do precipício, não poderemos esperar resultados tão animadores do possível novo governo Lula. O seu período será de reconstrução da economia, do meio ambiente e da democracia. Mas a sua existência será conditio sine qua non para que, na sequencia, governos de esquerda, puro sangue, possam, no bom sentido, imitar o exemplo de Portugal.                                            

 

Tudo dependerá do senso crítico e auto-crítico e da capacidade dos partidos de esquerda, especialmente o PT, renovar seus mecanismos decisórios,   de modo a estabelecer interação permanente com as bases, de tal forma que a participação popular, inclusive nos seus processos decisórios, possa servir de bússola para sua atuação. (BOAVENTURA: 2020).   

 

Se isto ocorrer, as chances de a esquerda “turbinar” o processo eleitoral no Brasil e influenciar o governo eleito, como fizeram os Verdes, o Bloco de Esquerda e os comunistas em Portugal, aproximando as políticas públicas  dos interesses das classes dominadas, serão consideráveis.  Oxalá as lições que nos ofereceu a Geringonça alcancem a práxis política de nossos partidos de viés socialista e  seus líderes.

 

(*) Professor Emérito da UFPB.  Autor, entre outros, de Le P.C.F et l’Europe (Nancy: Centre Européen Universitaire, 1974) et La gauche en France et la construction européenne (Paris: LGDJ, 1978) e Bolsonarismo: ideologia, psicologia e política (João Pessoa: Ed. Do CCTA, 2021) 

 Referências bibliográficas

AZEVEDO, Reinaldo. Alckmin vice de Lula? Progressistas vivem de olho nos conservadores do país.  Folha de São Paulo: São Paulo, 16 dez. 2021.

BERGAMO, Mônica. Lula e Alckmin buscam diálogo com o poder e vitória no primeiro turno. São Paulo, Folha de São Paulo, 18 dez. 2021.

BERGAMO, Mônica.Temer diz a empresários que eles nunca reclamaram de Lula quando ele governou o país.

BUCCI, Eugênio. Um colchão por domicílio. A Terra e Redonda. 18 dez. 2021.

CÉSAR, Carlos. Nota sobre o cenário político de Portugal. 29 nov. 2021.

CONRADO, Olga. Em uma foto, Lula e Alckmin desmontam bolsonarismo e ditadura. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2021.

COOK, Don. Charles de Gaulle. São Paulo: Ed. Planeta, 2008.

GENRO, Tarso. Revolução democrática. A Terra é Redonda. 12 out. 2021.

ISRAEL: aliança com partido árabe define um novo governo de união. Notícias R7 internacional. 18 dez. 2021.

LULA e Alckmin dão novo passo em aliança  para 2022 com primeiro encontro público Folha de São  Paulo, São Paulo,19 dez. 2021.

SANTOS, Boaventura. Quinze teses sobre o partido-movimento. A Terra é Redonda. 16 ago. 2021.

SERGE, Victor. Mémoires d’un révolutionnaire. Paris: Grasset, 1978.

SCHWARTSMAN, Hélio. Biologia Eleitoral. São Paulo, Folha de São Paulo, 16.12.2021.

TRANJAN, Alexandre. O grito pela opacidade contra a ideologia de união de classes. A Terra é Redonda. 13 dez. 2021.

   

 


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