BRASIL

Presidente do CNS: “O SUS só tem perspectiva se o povo for para a rua”

A presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro de Souza, é uma grata novidade para o Sistema Único de Saúde (SUS). Em 77 anos de existência, é a primeira vez que o CNS tem uma representação dos usuários do SUS no seu comando. Além disso, é a primeira vez que alguém do nordeste e do movimento popular foi escolhido. Socorro significa a quebra de barreiras para melhorar a universalização da saúde: é uma mulher, negra, usuária do SUS e sindicalista. A escolha se deu através de processo eleitoral em 2012. 

Em entrevista exclusiva, veiculada na edição 104(Julho/2015) da Revista Nordeste, Maria do Socorro fala sobre as dificuldades da saúde no Brasil, os investimentos do SUS no Nordeste e comenta as polêmicas envolvendo o Programa Mais Médicos.

Revista NORDESTE: Qual a visão da usuária, antes da presidente, em relação ao SUS hoje?

A visão da usuária é muito a partir do serviço da rede instalada no meu município, no meu território. A visão da usuária termina ficando mais restrita a como a política e o direito da saúde se materializa. É se você tem UPA perto de casa, se tem um posto de saúde que funciona, se numa situação de urgência e emergência a gente tem um atendimento. E, às vezes, a gente é muito duro, porque isso não funciona da melhor forma que a gente necessita. Quando a gente ocupa um lugar deste, se compreende mais a política de saúde nacional como um todo, compreende mais as dimensões de um sistema universal, a importância que o SUS tem como uma política social pública. Você passa a ter não apenas o olhar da queixa e da crítica, mas um olhar como conselheira de compreender os avanços que o Sistema tem, mas enfrentar as contradições, limitações e tal. Você pensa nacionalmente, conhecer o Brasil… O SUS se conforma de diferentes formas. Aqui na região norte e nordeste, por exemplo, o SUS ainda tem uma conformação muito desigual. Não consegue captar boa parte dos recursos, a média per capta também é bem mais baixa em relação aos estados do Sul e Sudeste. O investimento em produção conhecimento e tecnologia em relação ao Sul e Sudeste tem desigualdades. Neste lugar a gente consegue ter uma compreensão de como é muito mais explicita a desigualdade, mesmo sendo uma política que nós tentamos que ela seja uma política de estado e não de governo e mesmo sendo uma política com mais de 27 anos com a participação popular.

Revista NORDESTE: Como o SUS chega no Nordeste efetivamente?

Através dessa política de arrecadação e distribuição… O Fundo de Participação Municipal, Estadual, é uma forma primeira do Estado, a da União chegar nessas duas regiões menos desenvolvidas. Se não fosse essa forma de arrecadação, nós estaríamos com muito mais concentração de capital, tecnologia e decisão política do Centro-Oeste para baixo. Então a forma de arrecadação já tenta diminuir as desigualdades regionais. Outra forma do estado chegar é com as políticas sociais. Se você for olhar os últimos 15 anos, o que o Nordeste avançou e melhorou o padrão de qualidade de vida da população foi pelas políticas sociais. O Minha Casa, Minha Vida, o próprio SUS, que gera emprego, contrata muitas pessoas nos municípios menores. A própria educação que consegue ter uma boa parte de trabalhadores contratados para estar nas escolas. A economia local se dinamiza pela renda dos aposentados, pela renda dos pensionistas, pela transferência de renda com o Bolsa Família. Então você vê que tudo quanto é programa social dinamiza e mudou a cara da região Norte e Nordeste deste país. Mudou o IDHM, que é o Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios. Muitos municípios saíram da pobreza por conta dos programas sociais. Essa é a forma do estado chegar e realmente mudou a cara do Nordeste e acho que o Nordeste reconheceu isso e deu voto ao projeto que conseguiu fazer essa mudança histórica na região. Com todas as contradições que tem o governo Lula e Dilma, eles fizeram diferença para o Nordeste, portanto a gente não pode admitir retrocessos.

 

Revista NORDESTE: Os hospitais privados e os governos reclamam da falta de repasse ou atraso de repasso nos atendimentos do SUS. Quanto é repassado do SUS para a iniciativa privada e por que acontecem atrasos no repasse?

Essa política de repasses, fundo a fundo, do Governo Federal para os estados e municípios é importante que ela tenha uma certa agilidade, mas ela tem muitas injustiças e tem algumas contradições. O Governo Federal pactua no SUS um conjunto de compromissos (com a União, Estados e Municípios) e financia boa parte dessas ações e serviços que são pactuados. O que é prioridade na atenção básica, média e alta complexidade termina sendo tudo pactuado e isso define como vão ser destinados os recursos. Hoje lamentavelmente, a média e alta complexidade consome a maior parte dos recursos da saúde brasileira. E lamentavelmente essa parte de média e alta complexidade está muito mais dominada pelo setor suplementar (o privado) com leitos, clínicas especializadas e laboratórios. A dependência que o SUS tem desses contratos com o setor privado, ele paga caro, contrata serviços e (esses serviços) terminam capturando boa parte do orçamento da saúde. Mesmo as entidades filantrópicas não fazem nada de graça, é preciso que isso fique claro. Outra coisa, nessa questão dos repasses. O que o Governo Federal repassa para o município, por exemplo, para o programa de saúde da família, da urgência e emergência, em média é 30% do custo que aquele serviço representa para a gestão municipal. Mas o restante com quem fica? Em geral a União está fazendo mais investimento (na estrutura), o custeio fica com o município. Nós temos hoje uma rede de atenção básica importante no país. Não é mais aquele postinho. Temos UPAS estruturadas, CAPS, que é o Centro de Atendimento Psicossocial, temos a rede de urgência e emergência instaladas em muitos lugares do país, e isso foi investimento feito pelo Governo Federal, importantíssimo. Mas como você mantém esses serviços funcionando, quem paga o profissional? E o profissional é mais de 50%, 60% do custo que o município assume para o serviço funcionar. Essa é uma das grandes queixas que os gestores municipais trazem. O governo incentiva o serviço, financia boa parte do investimento na estrutura física, mas não garante a manutenção e os trabalhadores saem caro com o enquadramento da Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

Revista NORDESTE: Quanto de investimento vem para o Nordeste? 

Aí tem que fazer uma média proporcional à população. Como o Nordeste tem muitas áreas dispersas, assim como a Amazônia tem muitas áreas dispersas, populações dispersas. É grande o território, mas a população é dispersa. Então nós temos menos habitantes do que a região Centro-Oeste, Sul e Sudeste, a média per capita do Nordeste é cerca de R$ 23 reais por pessoa para investir em determinado período na saúde. Para o Sul e o Sudeste é o dobro. A distribuição de recursos é de acordo com a população. O Norte e o Nordeste saem perdendo em relação aos estados com populações mais densas. Esse critério populacional precisaria ser superado. Teria que ter outra forma de rateio. Pode ter menos gente na Amazônia e em algumas áreas do Nordeste, mas é exatamente ali que precisa de mais investimento.

 

Revista NORDESTE: Segundo o IBGE o Nordeste tem 50% da população pobre do país

Mais a prioridade não pode ser o critério da pobreza, a gente tem que dizer que o Nordeste precisa de mais investimentos sociais e econômicos para enfrentar a desigualdade. Nós somos mais pobres porque temos uma base escravocrata. Nós temos uma desigualdade muito grande de captação de recursos e tudo mais. Agora, qual o sentido de investir mais no Nordeste? Precisa de mais ação do Estado, estruturar escolas de qualidade, saúde, segurança, estradas de qualidade, moradia de qualidade. Eu acho que foi o que o governo Lula e Dilma começaram a fazer: dar uma outra cara para o desenvolvimento do Norte e Nordeste e reduzir as desigualdades. Portanto, é essencial que um BNDES invista nessas duas regiões. Concentrar muito dinheiro aonde já tem muito capital privado é muito injusto em relação ao Brasil. Eu acho que é isso que a gente espera. Que sejamos vistos como regiões com potencial de desenvolvimento importante e que o povo quer ser respeitado como cidadão brasileiro. Afinal de contas nós temos 50% dos votos brasileiros. 

 

Revista NORDESTE:Em termos de valores, quanto foi repassado nos últimos anos para o Nordeste?

Na verdade é muito difícil você ter uma metodologia para mensurar isso. O que temos é uma tentativa de colocar o quanto a União, os Estados e Municípios investem em Saúde no país, e o quanto a população paga do bolso de forma direta, com planos privados de saúde, exames especializados por fora e com medicamentos. Os dados mostram que a União em 2014 gastou cerca de R$ 91 bilhões, os estados R$ 57 bilhões e os municípios R$ 67 bilhões. Quando a gente junta estados e municípios dá bem mais que a União, quase R$ 120 bilhões. Tanto é que os percentuais são os seguintes: A União 20% do orçamento, os estados 12%, os municípios 15%. Apesar disso, o que a gente desembolsa com os planos privados de saúde, medicamentos e outros gastos, por exemplo, um exame especializado é muito mais do que o setor público investe. (A presidente apresenta dados que os gastos da população somam mais dos 50% investido pela União, Estado e Município. Mais de R$ 120 bilhões).

 

Revista NORDESTE: Em relação ao Mais Médicos, os médicos dizem que têm profissionais suficientes no Brasil, mas os salários não são bons ou as condições de trabalho inadequadas. O governo afirma que precisa de mais médicos. Quem está com a razão?

Essa quebra de braço não pode ser colocada entre Governo Federal e Entidades Médicas. Essa quebra de braço tem que ser entre estado e sociedade. Tem que garantir o direito a saúde e um SUS que funcione. E de fato a distribuição de médicos no Brasil é muito desigual. A maioria fica concentrada onde tem mais uma rede privada que pode pagar mais caro pelo serviço prestado pelo médico. E é muito injusto isso porque a maioria dos médicos, os bons médicos, são formados nas universidades públicas federais ou estaduais. Para formar um médico no Brasil numa Universidade Pública o custo é em média R$ 800 mil e ele não tem um mínimo de responsabilidade social, de compromisso ético profissional com o SUS! Isso é muito ruim. O Mais Médico tenta corrigir essas distorções. Primeiro. Qual é a formação que a gente precisa? O médico deve ser formado para o mercado, com especialidades, ou o médico deve ser um clínico geral que dê conta das necessidades gerais da população em primeiro lugar. Segundo. Além de pensar qual é a formação que esses médicos têm que ter, é preciso questionar como eles fazem o processo da prática. As residências médicas devem estar também articuladas ao serviço. Ou seja, você deve fazer residência médica dentro da Rede SUS instalada. Antes não tina muito isso. Eu acho que o Mais Médico amplia também as residências médicas. Você tem que ser formado em médico praticando medicina. Se você não tem uma rede instalada, aquele estudante, futuro profissional, vai fazer prática aonde? Então tem que ir para dentro do SUS, tem que ter Rede SUS instalada onde abre universidade nesse país. Terceiro. Distribuir. Eu sou muito favorável ao Mais Médicos. O que é limitador é que o Congresso Nacional ataca porque isso fere também as entidades médicas que quiseram muito colocar dificuldades. Agora nessa última etapa os médicos brasileiros foram maioria em relação aos médicos estrangeiros. Por último. É preciso mais investimento na atenção básica. Eu acho que essa iniciativa do Mais Médicos é para fortalecer a atenção básica. Então estava correta a política do governo, tanto é que as entidades médicas deixaram de bater e agora estão mobilizando os estudantes, os médicos mais jovens, para se inscreverem no programa.

 

Revista NORDESTE: Quais  novas perspectivas podemos esperar do SUS?

Eu acho que o SUS só tem perspectivas se o povo brasileiro de fato reconhecer a sua importância. Acho que os gestores estão muito tecnicistas, gerencialistas, fazendo pouca gestão política. A 15ª Conferência Nacional de Saúde (que será realizada de 1 a 4 de dezembro) quer ser esse espaço de mais participação popular. Quer trazer o cidadão comum para dentro das Conferências para discutir o SUS e o direito a saúde, até porque estamos enfrentando uma conjuntura muito dura. Basta ver o que o Congresso Nacional está fazendo, aprovando projetos de emenda a Constituição como o 451. Desconstruindo o SUS dizendo que a saída para o trabalhador é ter plano privado, a entrada do capital estrangeiro, o PL 4330 da terceirização. Então nós temos uma conjuntura muito difícil. Qual é a perspectiva? Só tem perspectiva se de fato o povo for para a rua, se de fato nós tivermos unidade em torno dessas agendas, financiamento, gestão, enfrentar o debate da reforma política, mas também tem que mudar o modelo de atenção a saúde. Mais dinheiro para fazer o que o SUS faz é enxugar gelo, é preciso alterar esse modelo de atenção a saúde, menos médicos, menos hospitais ou menos medicamentos, mas mais vigilância, mais promoção da saúde, mais autonomia nos processo também para enfrentar as mazelas. A sociedade brasileira tem fome, pobreza, desemprego, falta de saneamento básico, tem uma baixa escolaridade ainda e tudo isso determina a situação da saúde. Não fez reforma agrária, não fez reforma urbana. Então para novas perspectivas temos que enfrentar tudo isso, senão vamos ter dinheiro e dinheiro para saúde e não muda esse ambiente, essas condições. 


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