BRASIL

Revista NORDESTE: Economia mais humana e menos competitiva

Uma visão Mais Humana

Associações, cooperativas e redes solidárias cada vez mais apostam num tipo de economia voltada para as necessidades das comunidades e menos em torno da lógica onde a competição e o lucro rege o mercado

Por Paulo Dantas 

Imagine uma comunidade onde todos se ajudam, não há a lógica do mercado. Não há capitalismo predatório, onde pequenos empreendedores são destruídos através da lógica de mercado, quando os maiores diminuem seus preços para depois estabelecer o controle completo da oferta e do preço. Essa é a Economia Solidária, um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é preciso para viver. Enquanto na economia convencional existe a separação entre os donos do negócio e os empregados, na economia solidária os próprios trabalhadores também são donos. São eles quem tomam as decisões de como tocar o negócio, dividir o trabalho e repartir os resultados. Hoje, no Brasil são milhares de iniciativas econômicas, no campo e na cidade, em que os trabalhadores estão organizados coletivamente em associações e grupos de produtores; cooperativas de agricultura familiar; cooperativas de coleta e reciclagem; redes de produção, comercialização e consumo; bancos comunitários; cooperativas de crédito; clubes de trocas; entre outras. São mais de 1,4 milhão de trabalhadores envolvidos em atividades de Economia Solidária. Dados de 2013 apontam 103 Bancos Comunitários em funcionamento, 52 deles no Nordeste.


As ações solidárias têm tomado vários regiões do Brasil, principalmente no Nordeste. Para o estudioso Genauto Franca Filho, da Universidade da Bahia, a economia solidária investe numa proposta com muito mais sentido para a raça humana, construindo uma ação econômica no seu sentido mais profundo, em termos filosóficos, antropológicos e históricos, com atividades voltadas para a reprodução das condições matérias de existência que estejam realmente a serviço das pessoas e não subjugando as pessoas. O estudioso defende a ideia da economia como um meio onde a economia serve como base para que o ser humano realize outros propósitos, sociais, políticos, culturais. “Essa é a visão diferente da visão da economia como fim em si mesmo, quando, por exemplo, o objetivo da atividade econômica é gerar acumulação material. Para quê? Para alguém enriquecer. Qual o sentido disso? Para alguém acumular e usufruir sozinho. Isso não faz sentido, é uma economia exterior a condição humana. Uma coisa é a economia estar a serviço do ser humano, outra coisa é a economia ser autocentranda, servir para ela mesma”. 

Genauto explica que o objetivo da economia solidária, em seu escopo mais amplo, não é a renda em si, a meta não é o acúmulo de riqueza, ideia sempre apregoada pelo capitalismo através do estímulo à competição e o lucro. Ainda que, evidentemente, o aumento da renda seja desejável num empreendimento econômico solidário o que é gerado como resultado econômico deve ser, necessariamente, reinvestido, seja nas pessoas que participam do empreendimento, seja no seu próprio território, comunidade.

O movimento da Economia Solidária começou a tomar força no Brasil a partir da segunda metade dos anos 90, estimulada por discussões que nasceram a partir do economista Paul Singer, um dos fundadores do PT. Na época o mundo estava metido numa crise que vinha rolando desde 1994, com a inadimplência do México, depois crise asiática, crash na Rússia, Turquia, Argentina. As crises se estendiam. Em 2001, no Fórum Social Mundial se levantava a ideia da importância das cooperativas ou a renovação do cooperativismo como uma forma de trabalho diferente. No Fórum Social foi criado um grupo de Trabalho, dedicado a Economia Solidária, reunindo diferentes atores e entidades. “Nessa ocasião se escreveu uma carta enviada ao recém empossado governo Lula, sugerindo a constituição de uma instância de governo para apoiar a economia solidária, foi daí que nasceu a secretaria nacional de economia solidária. Então esse período 2001, 2002 e 2003, quando surge a Secretaria Nacional, é o momento em que a economia solidaria vai tomando corpo, forma e se expande no Brasil. Aí vão se multiplicando os empreendimentos e suas redes”, pontua Genauto.

A Economia Solidária tem solo fértil no Nordeste, contudo ainda não há um mapeamento preciso. Hoje diversos órgãos governamentais atuam no seu fomento, nos três níveis: federal, estadual e municipal. No nível federal, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) é o órgão incumbido de viabilizar e coordenar atividades de apoio, mas há vários órgãos que também possuem ações vinculadas, o que pode ser observado no Plano Plurianual, que inclui a Economia Solidária em diversos programas, objetivos e ações. Segundo dados do Senaes há no Nordeste mais de 8 mil iniciativas cadastradas, são mais de 19 mil em todo o país. Contudo, os dados estão desatualizados.

Dinheiro barato e exportação

O empreendedorismo é incentivado no setor, mas por uma ótica diferente do usual, o lucro não é a meta, mas o bem estar e subsistência. Para entender como funciona na prática é preciso mergulhar no seu âmago. Há casos mais conhecidos, entre eles o da Bahia onde há uma rede de comércio justo praticado pelo Cooperativa Agropecuária Familiar, de Canudos, Uauá e Curaça (Coopercuc) no semiárido. Lá 204 agricultores, na maioria mulheres, trabalham na produção de compotas, doces e geleias de frutas nativas, boa parte a base de Umbu, comercializa em mercados sofisticados do Brasil e exportada também para países como Itália, França e Áustria. A Coopercuc tem sede em Uauá, mas conta com 18 unidades de beneficiamentos distribuídas também em Canudos e Curaçá (BA). Maria Leide Rodrigues da Silva, conhecida como Leda, é uma das fundadoras. Aos 43 anos, a agricultora nasceu e se criou no campo, onde mora com o marido e um casal de filhos. Ela pertence à comunidade de Lajes das Aroeiras, em Uauá e coordena um grupo de cinco mulheres que produzem compotas de geleias e sucos. “Todas fazem de tudo, mas a gente reveza o trabalho. Num dia uma fica dentro da cozinha e a outra fica do lado de fora mexendo com os potes e por aí vai”, revela. A produção é dividida em partes iguais, dependendo do número de pessoas no grupo. Eles recebem de acordo com a quantidade que produzem. A Coopercuc compra embalagem, açúcar, rótulo, tampa, carimbo, produtos de limpeza, que são entregues nas comunidades. Tirando as despesas com os insumos, o que sobra é do grupo. Dependendo da produção no período das safras das frutas, as cooperadas conseguem tirar, no total, cerca de R$ 3,5 mil. Leda explica que o trabalho dela e do marido, que são cooperados, ajuda no sustento da casa. Mas no período das entressafras, eles contam com o apoio do Governo Federal. “Trabalhar na cooperativa ajuda no sustento, mas no período que não tem produção a gente conta com o Bolsa Família e assim vamos vivendo”, diz. Outra novidade dentro da Coopercuc é a cerveja de umbu cuja a aceitação está sendo boa. O produto já foi apresentado na Itália e Alemanha.

Há uma experiência mundialmente conhecida no Ceará, o Banco Palmas. O banco é conhecido formalmente como um "banco comunitário de desenvolvimento" ou BCD, foi fundado em 1998 no Conjunto Palmeira, um bairro da periferia de Fortaleza, na época com 32.000 habitantes. A instituição foi uma das primeiras a surgirem no Brasil. É gerido majoritariamente de forma voluntária, pela Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira, conhecido por sua sigla ASMOCONP. A intenção é incentivar o trabalho e a geração de renda através de sistemas de economia solidária, focada na superação da pobreza urbana e rural. Para isso, o banco garante microcréditos para produção e consumo local, com taxas de juros mínimos e sem requisitos para inscrição, comprovante de renda, ou fiador (a confiabilidade do tomador é garantida por vizinhos). Além disso, o Banco fornece acesso a serviços bancários para os moradores das comunidades mais pobres, que normalmente não teriam acesso nas instituições tradicionais. Dados de 2012 apontavam que o banco chegou a emprestar mais de R$ 300 mil, numa carteira de movimento financeiro que chegava a quase R$ 2 milhões. Dados também de 2012, apontam a existência de 81 entidades como esta no país.

Outro exemplo na mesma linha, vem de Alagoas, onde existe um Banco Comunitário Olhos D’Água incubado pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Campus Arapiraca, em parceria com a Associação Terra Viva de Agricultores Alternativos (ATV) e o Fundo para o Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Fundaf). A experiência é pioneira no estado e funciona na cidade de Igaci , escolhida por se tratar de um território onde a organização associativista já é considerada forte. No local, são mais de 30 associações comunitárias em atividade, além de diversos outros programas e projetos em desenvolvimento. Cerca de 70% dos comerciantes locais já aderiram ao sistema de moeda social intitulada “Terra”. Contudo, seu uso ainda é restrito, entre consumidores locais, comerciantes, produtores e prestadores de serviços.
O trabalho desenvolvido em Igaci pela Associação Terra Viva de Agricultores Alternativos (ATV) também é exemplar. Criada em 1988, a ATV, busca criar um caminho diferenciado de agricultura familiar, frente à monocultura e a agropecuária empresarial. Assim, desenvolve alternativas adaptadas a realidade local, que envolvem o meio ambiente, entre elas adubação verde e orgânica, recuperação e disseminação das sementes crioulas, criação de pequenos animais, recuperação de áreas de preservação permanente. Neste ano a Associação ajudou na construção de uma fábrica de melado para que os agricultores pudessem fazer rapadura. A fábrica tem por objetivo proporcionar aos pequenos agricultores da região do Baixo Araguaia uma nova alternativa de geração de renda. Valdo da Silva tesoureiro da ATV comenta sobre a construção “O dinheiro era pouco, basicamente ficou no material e sobrou para contratar um pedreiro, então nós mesmos trabalhamos como serventes e, quando vimos já estava pronta à estrutura. A fase de acabamento nós fizemos sozinhos”.   

A reinvenção do mercado

Outra iniciativa de peso acontece a partir da preocupação com a preservação do meio ambiente nos países do primeiro mundo. Essa preocupação impulsionou o crescimento da fibra de sisal. Um produto natural e, que quando descartado, se decompõe, sem poluir a natureza como os produtos sintéticos. Essa perspectiva fez da Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira., conhecida como APAEB, uma empreitada de sucesso. A Associação produz tapetes de sisal numa fábrica em Valente, a 244 quilômetros de Salvador. Criada em 1980, graças a articulação de agricultores do semiárido que buscavam alternativas para uma região que vinha demonstrando esgotamento econômico, e construiu uma indústria com recursos vindos do Banco do Nordeste, do Disop, uma instituição ligada ao governo da Bélgica, e da Inter American Foundation, dos Estados Unidos. A APAEB possui modernos teares que produzem até 100 mil metros quadrados de tapetes e carpetes por mês e cerca de 200 mil quilos de fios. A fábrica funciona diariamente e gera cerca de 250 empregos diretos. A maior parte da produção é comercializada no mercado nacional. Outra parte é exporta para Argentina, Estados Unidos e países da Europa.

A primeira atividade econômica experimentada pelos agricultores, antes da formação da APAEB, foi um modesto Posto de Vendas, um espaço onde os associados colocavam à venda os produtos da agricultura familiar e ao mesmo tempo podiam comprar outros produtos por preços mais baixos, já que não se visava o lucro no empreendimento. O passo seguinte foi juntar os produtores para vender em grupo o sisal, principal produto agrícola da região. Aos poucos, passou-se à batedeira de sisal e depois à indústria de tapetes e carpetes. Assim, o dinheiro que antes ficava na mão de atravessadores e intermediários passou a circular no município. Gradativamente, a APAEB Valente foi estimulando a diversificação, através de outros projetos econômicos, como laticínio e curtume, que criam mercado para que os produtores invistam na criação de caprinos e ovinos, animais ideais para as condições econômicas dos produtores e para o clima da região, pois consomem menos água e alimento do que os bovinos.
Para Genauto, a vocação maior da Economia Solidária é “operar uma dinâmica plural de combinação de diferentes lógicas econômicas, envolvendo o mercado, mas resignificando esse mercado, regulando e contendo o seu efeito perverso, tornando o mercado um mecanismo democraticamente gerido”. Esse novo mercado pode ser constituído tanto através da associação entre produtores e consumidores, quanto entre prestadores de serviços e usuários. “Se você associa demanda e oferta, no lugar de trabalhar demanda e oferta de maneira separada, você está reinventando o mercado, recriando a própria relação de mercado. Essa é a nova vocação da economia solidária. Não adianta imaginar que cada um vai empreender livremente, criar o negócio que quiser, se o território não suporta vários empreendedores surgindo aleatoriamente. A economia solidária tem vocação para qualificar a ação empreendedora. Ou seja, criar os empreendimentos em função das reais demandas e necessidades do território. Você começar a criar uma economia mais consoante com as necessidades humanas, e não uma economia baseada no consumismo desenfreado. Uma oferta de crédito, por exemplo, independente da necessidade das pessoas terem crédito, o que gera o endividamento”, alerta.

Apesar, e até por causa dessa visão mais humanística, obviamente que em termos globais, do ponto de vista da comparação, a economia solidária tem conseguido agregar ainda um valor considerado muito baixo, tanto de participantes quanto de volume financeiro. Mas o que mais valoriza essa economia não é, por hora, o seu resultado quantitativo global em si, mas o é o que essas práticas têm de impacto nos seus respectivos territórios, como elas mudam as vidas das pessoas e como acena um potencial que representa para uma plataforma e uma agenda renovada do desenvolvimento. “Nós estamos vivendo um dilema, porque a sociedade, o planeta, precisa de desenvolvimento, mas o desenvolvimento não pode ser baseado no crescimento econômico. E como se faz um desenvolvimento sem crescimento econômico? É aí que surge a perspectiva da economia solidaria. O desenvolvimento não baseado no crescimento econômico, um crescimento econômico necessariamente predador, onde há a necessidade do aumento do consumo permanentemente. Isso impacta o meio ambiente, além de ser inviável porque gera saturação do mercado. Chega um momento que não tem para onde expandir. Esse outro caminho, eu não consigo ver, senão a partir de uma outra ideia de economia, que no caso da economia solidária pressupõe, na verdade, um outro sistema de valores, uma outra cultura. Não se pode mudar uma sociedade na economia se você não tiver uma outra cultura. No fundo, no fundo a luta da economia solidária é por outra forma de viver, se relacionar economicamente, socialmente, culturalmente”, argumenta o estudioso. O processo iniciado pela Economia Solidária é gradual e propõe uma transformação que não pretende aniquilar as formas de economias instituídas, mas pretende regular, o que Genauto entende como perversão do mercado.

Entretanto, apesar vislumbrar um futuro promissor, Genauto considera que há riscos à Economia Solidária com a saída do governo do PT, do Governo Federal. “Da mesma forma que fortalecimento das economias de mercado pressupõe investimento público do Estado, eu não conheço nenhum setor produtivo privado que tenha nascido, crescido e se desenvolvido sem apoio público, da mesma forma a economia solidaria perde muito quando os governos deixam de perceber a dimensão de importância dela. Então, nessa virada, nessa conjuntura atual, o prejuízo para esta economia pode ser muito grande, porque o governo atual não tem a mesma sensibilidade, ao contrário. Ele começa a praticar uma politica de desmantelamento do Estado e não consegue enxergar o potencial de investimento público que o estado pode trazer para desenvolver as iniciativas da sociedade. Ele só consegue raciocinar em termos de mercado”.
 


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