BRASIL

Revista NORDESTE entra no debate sobre maconha e saúde

Alvo de preconceitos, a maconha tem muito mais qualidades do que a maioria das pessoas pensa. Usada como um entorpecente em todo o mundo, o uso da planta é proibido na maioria dos países. No Brasil é proibido, não apenas o uso da maconha como fumo, mas também a posse e o cultivo da planta. A Cannabis, nome ciêntífico da planta, tem outras faces e isso que a Revista NORDESTE traz nessa matéria da 116ª edição da revista.

A Maconha revisitada

Proibida no século XX, estudos com a maconha demonstram sua eficácia no combate a várias doenças; famílias no Brasil e no mundo lutam para conseguir mudar visão da sociedade e liberar o uso da planta

Por Jhonattan Rodrigues


Lembrada principalmente por suas propriedades entorpecentes, a cannabis – ou maconha, entre tantos outros nomes pela qual é conhecida – é uma planta bastante versátil, podendo ser matéria prima para indústria alimentícia, têxtil e até farmacêutica. De uso milenar, a partir do século XX uma onda proibicionista implementou a visão estigmatizada que permanece até hoje. Pensando em suas propriedades medicinais, diversos países já começam a repensar suas leis repressivas à cannabis. Famílias no mundo todo lutam contra a visão embotada de preconceito da sociedade e do meio acadêmico a fim de garantir uma vida melhor para as pessoas que amam.

Júlio Américo é pai de Pedro, de 6 anos, e presidente da Liga Canábica na Paraíba, entidade formada por famílias com pacientes que dependem dos remédios produzidos a partir da maconha. Pedro é portador da Sídrome de Lennox-Gastaut, uma doença epilética que ataca o sistema neurológico, causando disfunções nas capacidades motora e cognitiva. Júlio conta que, mesmo tomando cinco anticonvulsivantes diferentes, seu filho tinha em média trinta e cinco convulsões por dia. “Sem falar nos efeitos colaterais desses remédios. Tínhamos que monitorar a função hepática, a função renal, inflamações cerebrais… depois que começamos a usar os óleos de cannabis ricos em canabidiol e THC, tomando apenas dois anticonvulsivantes – e, destes, um já está sendo abandonado – as crises diminuíram para seis, e bem menos intensas. Meu filho andava, falava algumas palavras, usava as mãos, pegava um copo e tomava água e por conta das crises epiléticas ele perdeu tudo isso e está começando a recuperar por conta do uso da cannabis. A cannabis está devolvendo a vida ao meu filho.” Ele conta ainda que seu pai também se beneficia com os remédios a base de maconha: “Meu pai usa um óleo de cannabis, para uma demência que ele tinha. Ele estava com todos os sintomas de alzheimer. Hoje ele recuperou todas as funções sem tomar um remédio convencional, só com o uso do óleo de cannabis.”

Lutas

Júlio e Sheila Geriz, mãe de Pedro, descobriram as possibilidades medicinais da maconha por meio de uma reportagem veiculada na tv que mostrava a luta de Katiele Bortoli Fischer, que era obrigada a importar os remédios ilegalmente para sua filha Anny, também portadora de uma síndrome epilética. A história rendeu o documentário Ilegal: A vida não espera, cuja campanha de conscientização, em conjunto com o apelo da famílias, conseguiu algumas vitórias na justiça.

Em janeiro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) retirou da lista de substâncias proibidas o canabidiol e tetrahidrocannabinol (THC), provenientes da cannabis e em março deste ano liberou a importação de remédios que as tivessem em sua composição. Entretanto, apesar do avanço, a situação ainda não está fácil para as famílias e pacientes de dependem de canabinóides.

As resoluções da Anvisa foram importantes para tirar as famílias da clandestinidade, e agora é possível comprar os produtos dentro da lei, por meio de uma pedido no site da Anvisa e documentação necessária. Porém os altos preços para se importar um medicamento continua a ser uma empecilho. Uma única seringa, contendo 10 ml da pasta de cannabis pode chegar a R$ 600, o que logo exclui famílias com menor condição financeira, por exemplo.


Segundo Júlio, a solução para esse impasse seria possibilitar que o plantio e produção fosse feito no próprio país. “O que está faltando é uma produção nacional. É dar direito a empresas, a clubes de pacientes e principalmente a associações sem fins lucrativos produzirem e extraírem cannabis aqui no Brasil, para que as universidades públicas possam pesquisar variedades da planta, melhor genética, uma eficácia terapêutica a partir da composição com mais canabidiol ou THC. Isso tudo é possível com estudos clínicos. Mas não tem financiamento para pesquisa, não tem formação da classe médica. Não existe um trabalho de política pública nesse sentido, nem uma regulamentação que nos ampare. O que se tem hoje é um avanço muito tímido, diante de uma demanda enorme.” Ele também explica que outro benefício seria a economia para o sistema público de saúde. “Sairia mais barato para aquisição e também para o SUS. Imagine se o SUS for pagar essa demanda toda? Só uma seringa pode custar R$ 1200. Com essa quantia, atenderíamos muito mais pacientes. O dinheiro público seria muito melhor aproveitado se tivéssemos produção local”.

Outro problema é a garantia de qualidade do produto. Katy Albuquerque é doutora em farmacologia com especialização em produtos naturais pela UFPB e estuda as propriedades medicinais da maconha. Ela conta que trabalhar com importações dificulta o avanço dos estudos, uma vez que não há controle sobre o produto, e laboratórios não demonstram interesse em fazer um teste de qualidade se não estão fabricando. Isso incorre em uma falta de certeza quanto ao remédio que está sendo utilizado. “As vezes o paciente faz uso de um produto e, quando este acaba e ele importa outro lote, não tem o mesmo efeito do anterior, mesmo sendo o mesmo produto. Você pode ter no rótulo de um remédio dizendo 35% CBD. Quem garante que existe realmente esta concentração nesse produto? Não existe certificação alguma. A gente fica de mãos atadas porque a gente não pode produzir. Mas eu tenho esperança que no futuro a legislação permita o cultivo e produção, pois teríamos como fazer análises e garantir remédios de qualidade e maior segurança do produto que os pacientes estão tomando”.

A farmacóloga coordena um projeto de pesquisa que acompanha pacientes que apresentam epilepsia de difícil controle e utilizam medicamentos da cannabis. Junto com os alunos do projeto, Katy faz o acompanhamento dos pacientes, reunindo informações como a quantidade e o horário em que o óleo da cannabis está sendo administrado, e verifica os efeitos, procurando saber se há, por exemplo, alguma interação medicamentosa com os anticonvulsionantes clássicos. Ela conta que é um trabalho em conjunto com os responsáveis pelos pacientes e com os médicos e que até o momento os resultados tem sido promissores. “Todos os pacientes que acompanho, depois que começaram a fazer uso do canabinóides, tiveram uma redução bastante significativa das crises convulsivas e além disso obtiveram um ganho na parte cognitiva. Muitas crianças voltaram a frequentar a escola. Depois de identificamos interação entre os anticonvulsivantes clássicos e os canabinóides, fazemos um encaminhamento para o neurologista que está acompanhando o paciente, sugerindo algumas condutas terapêuticas. Cabe ao neurologista acatar ou não. Mas até o momento 100% dos médicos acataram as sugestões. Essa parceria só traz ganho para os pacientes.”

Mas e por que um remédio que, mesmo sendo usado de maneira quase incerta, já demonstrou uma eficácia quase milagrosa, não recebe maior incentivo e visibilidade?
Para Júlio, podem haver dois motivos para isso. “Eu não sei até que ponto a indústria farmacêutica perde com a diminuição do uso de anticonvulsivantes e antidepressivos, por exemplo. Como a Cannabis é uma única substância e na medida que você toma uma certa dose, equilibra o seu organismo, você tem benefícios para várias patologias ao mesmo tempo. Então isso assusta a indústria farmacêutica. Em segundo, o preconceito. A história de preconceito causada pelo proibicionismo, onde se coloca a Cannabis como uma droga pesada, porta de entrada para outras drogas e outra série de mitos que se criaram e não se confirmam cientificamente. E muitos cientistas aliás, têm esse preconceito. Sofremos preconceito em vários momentos em que tivemos contato inclusive com cientistas que se recusaram a estudar Cannabis e alguns alegaram que não queriam ser conhecidos como ‘pesquisador da maconha’”.

Como funcionam os extratos da maconha

“Nós temos no nosso corpo alguns receptores de canabinóides, que são o CB1 o CB2”, explica Katy. “São receptores que já existem em nosso corpo e fazem parte de um sistema chamado endocanabinóide. Esses receptores estão associados com a regulação da liberação ou não de determinados neurotransmissores. Um neurônio libera uma substância, que é o neurotransmissor, que por sua vez irá estimular outro neurônio. Um estímulo desordenado é o que gera convulsão. Esses neurônios expressam receptores para canabinóides, que são próprios do nosso corpo, endógenos. Quando fazemos uso de um canabinóide exógeno, vindo da Cannabis, por exemplo, essas substâncias vão regular a liberação desses neurotransmissores excitatórios. É dessa forma que temos a diminuição do quadro de convulsão de muitos pacientes.”
 

Proibição a partir do século XX

A história do proibicionismo à cannabis tem suas idas e voltas, mas foi a partir do início do século XX, devido a interesses mercadológicos e preconceito contra minorias, que começou a se intensificar. Até então, por milhares de anos foi utilizada livremente para fins religiosos, recreativos e principalmente medicinais.
Em 1912 diversos países assinaram a Convenção Internacional do Ópio, durante a Primeira Conferência Internacional do Ópio, em Haia. Encabeçado pelos Estados Unidos, o documento previa colaboração dos países no combate e controle do mercado de ópio, cocaína e derivados. Ao longo dos anos seguintes, a Cannabis acabou sendo perseguida também, principalmente por empresários estadunidenses do ramo têxtil, interessados em tirar da jogada o cânhamo, outra variedade da cannabis, sem as propriedades entorpecentes, e muito utilizado na produção de fibras e tecidos. O fato da cannabis ser amplamente consumida por imigrantes mexicanos – com o nome de marijuana – também não ajudou, e os interessados em difamar a maconha começaram a espalhar que a droga deixava os usuários violentos, tachando-a de “erva do diabo”.

No Brasil, a cannabis era consumida principalmente por negros e utilizada para fins religiosos em rituais de umbanda, o que fazia com que parte da população a visse com maus olhos. No entanto, a erva era vendida em farmácias até 1938, para combater asma, tosse e como analgésico. Apenas com a proibição geral estadunidense de 1937, o Brasil, seguindo pressão internacional, começou a reprimir severamente vendedores e usuários da droga. Daí pra frente o uso da Cannabis passou a ser motivo de cadeia ou de hospício e os preconceitos se reforçaram, lançando as possibilidades médicas da erva em um limbo, esquecidas pela maioria da população.

Mudanças

Novos ares começaram a soprar em 1976, quando a Holanda liberou o uso controlado da droga, tanto para fins medicinais quanto recreativos. Em Israel a erva ainda é proibida, mas desde 1992 plantações fornecem estudo e medicamentos, e hoje o país é referência científica na área. Nos EUA a proibição ainda é o ditame oficial, mas por lá os estados tem certa autonomia e em 1996 a Califórnia liberaria a cannabis para fins medicinais, e hoje 22 estados mais o distrito de Columbia já oferecem a possibilidade da erva ser usada como medicamento. O Canadá se tornaria, em 2003, o primeiro país do mundo a liberar oficialmente o uso da maconha para uso medicinal, produzindo em 2005 o Sativex, primeiro medicamento com base na cannabis aprovado. O remédio é um spray oral, tendo tanto THC quanto CBD como princípios ativos.

Na América Latina a vanguarda é do Uruguai, que em 2013 apostou na liberação geral da droga, mas o Chile é que se destaca na área medicinal: desde 2015 possui uma legislação para o assunto e hoje dispõe da maior plantação de maconha legal do continente latino, com quase 7 mil pés da erva, que serão utilizados para produzir e distribuir de graça remédios para 4.000 pacientes.

Além da epilepsia, estudos já indicam que os canabinóides podem ser eficazes no combate às dores crônicas, mal de Parkinson e Alzheimer. Com tantas possibilidades, a maconha agora começa a ser revisitada, e diversos países do mundo aderem ou discutem a sua liberação. No Brasil, apesar das leis estarem se tornando mais brandas, ainda há muito chão pela frente para as famílias e pacientes que dependem da droga. A melhor forma de mudar essa situação, segundo Júlio, é a união das famílias e entidades na busca por conscientização da população e do poder público. “A nossa ideia é criar uma cultura de acolhimento, em que a sociedade tenha um olhar favorável em relação ao uso medicinal da cannabis, faz eventos científicos, culturais, para que possamos divulgar e dar informações para a população. E também pressionar o legislativo, ganhando apoio de parlamentares nos estados onde a gente mora, influenciando o congresso nacional e entrando com processos na justiça para que possamos cultivar e extrair os óleos”, diz. “A ciência precisa se debruçar sobre isso, porque é o direito à saúde das pessoas que está sendo negado por omissão. Omissão do poder público, da classe médica, da ciência. Precisamos dar passos no sentido de construir uma política pública que mobilize esses segmentos à favor do direito universal à saúde desses pacientes que têm direito à cannabis medicinal”, conclui.
 

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