NORDESTE

Revista NORDESTE traz reportagem especial sobre Padre Cícero: prefeito, vice-presidente do Ceará, deputado federal e Santo

O padre Cícero, ícone do Nordeste brasileiro ressurge como tema central em reportagem da Revista NORDESTE. Aldo Lopes de Araújo recorda a clássica biografia “Padre Cícero: poder, fé e guerra no Sertão” de Lira Neto, que dedicou dez anos de estudo à obra. A reportagem explora a complexa trajetória do religioso no árido Cariri do Ceará.

 

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Por Aldo Lopes de Araújo

 

 

 

Com a notícia de que o padre Cícero, ícone dessa grande pátria chamada Nordeste — e que nas últimas eleições salvou o Brasil do fascismo — estaria, como esteve, no tema principal do carnaval da Sapucaí, no Rio de Janeiro, lembrei de fazer uma releitura da clássica biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no Sertão, de Lira Neto, autor de livros seminais como “O inimigo do Rei”, retratando José de Alencar (prêmio Jabuti de melhor livro do gênero do ano de 2007), além das biografias de “Getúlio” e “Maysa”, entre outros títulos.

 

O escritor cearense — que hoje mora em Portugal — não teria se dado à façanha de escrever sobre o padre se lhe fosse exigido escamotear fatos que, ao longo de meio século, resultaram determinantes para a construção de um período importante da história do Brasil: a República velha.

 

Mergulhado numa montanha de jornais, livros, documentos e transcrições orais, Lira Neto torrou neurônios e noites e dias em dez anos de estudo, para compor o retrato mais bem acabado que se conhece acerca do padre Cícero e seu périplo pelas veredas desse mágico, árido e encantado Cariri do Ceará.

 

Para escrever a presente biografia de 557 páginas, editada pela Companhia das Letras, o autor usou um recurso cinematográfico em que o padre Cícero aparece como uma espécie de âncora de jornal televisivo.

 

Enquanto conduz a ação, o sacerdote vai chamando um a um os personagens do drama, os saltimbancos da história. E entra em cena a farda, a toga, o cajado, a mitra e o chapéu de couro. Fecho os olhos e imagino esse desfile anunciado pela Unidos da Padre Miguel com o enredo “O redentor do sertão”, a representação do padre Cícero puxando o cordão temático do samba enredo e os viventes do seu universo mítico teletransportados para o asfalto da Marques do Sapucaí.

 

Cada paralelepípedo da velha cidade certamente vai se arrepiar, como no belo samba de Chico Buarque.

 

A cena vai desde a Guerra do Paraguai até o Golpe de 1930, tendo o Cariri cearense como o centro irradiador dos acontecimentos, terreno fértil para a modelação de lideranças religiosas, de caciques políticos alicerçados no mandonismo local, caudilhos aloprados e gananciosos, cada um a seu bel- prazer dominando suas taifas e potentados, onde o voto de cabresto foi rapidamente substituído pelo escrutínio da bala.

 

 

 

HÓSTIA VIRA SANGUE

 

 

No dia 1 de março de 1889, ao ministrar a comunhão à beata Maria Araújo, a hóstia teria se convertido em sangue. Os boatos em torno do pretenso milagre — que para a Igreja não passava de um embuste — correram os sertões nordestinos e o Brasil. A partir de então, Juazeiro ficou pequeno para as multidões em constantes romarias.

 

A cidade passou a ser vista pelos cristãos como a Meca nordestina dos milagres, a Nova Jerusalém do Brasil, lugar escolhido por Jesus Cristo para o seu retorno triunfal. As cortes celestiais entravam em conexão com a terra através da beata Maria Araújo e do padre Cícero Romão Batista.

Foi quando uma investigação a cargo da diocese do Crato jogou um penico de água fria no fogo dos pretensos milagres, abrindo caminho para o calvário do padre. O moído virou um furdunço, cujo eco atravessou o Atlântico e acabou chegando aos ouvidos de Roma. O padre Cícero havia provocado a ira divina dos doutores da Igreja que passaram tê-lo na conta de um embusteiro, um autêntico charlatão. Não deu outra: o Tribunal do Santo Ofício reagiu e tomou a decisão drástica de suspendê-lo das funções sacerdotais. Corria o pontificado de Leão XIII.

 

Com a recente Proclamação da República, o estado brasileiro se desvinculou da Igreja, tornando-se laico. O país não tinha ainda cicatrizado de todo as perebas de Canudos, contabilizava seus mortos, as baixas do Exército nacional e da jagunçada que, defendendo o arraial, havia tombado ao lado de Antônio Conselheiro. Monarquistas e republicanos atracados na faca e na bala.

 

 

EXPULSO DA IGREJA

 

 

Milagre ou não, o caso Maria Araújo — combinado ao prestígio de guia espiritual, curandeiro, benzedor e conselheiro de que sempre estivera investido o padre Cícero — fez do Juazeiro um dos maiores centros de peregrinação do mundo, com um movimento espantoso de romeiros pagando suas promessas e venerando a santidade do padre, até mesmo depois de sua morte, 75 anos depois.

 

 

Suspenso das ordens sacerdotais, sem mais poder celebras missas, nem ministrar os sacramentos, nem batizar os filhos dos milhares de romeiros que corriam para o Juazeiro em busca da salvação, o padre ficou sem saber o que explicar aos fiéis. Esperneou, brandiu o cajado, amassou o chapéu contra a parede, mas acabou se conformando. Não era dado a bate-boca com seus superiores. Jamais lhe passara pela cabeça o ânimo de golpear a hierarquia. Afinal, a ordem vinha de cima, do chefe do rebanho: o papa. Não tinha mais jeito. Roma locuta, consummatum est.

 

VIAGEM À ROMA

 

 

Apesar de tudo, o padre Cícero tinha esperança. Apostava numa viagem que faria a Roma. Provaria perante os membros da Congregação do Santo Ofício que não era um embusteiro e que o Juazeiro nunca fora um antro de fanáticos e miseráveis. Para tanto, amealhou uma pequena fortuna junto aos amigos, fiéis e admiradores, com o propósito de ir à Europa.

 

 

Precisava salvar a batina e a própria pele. Embarcou num vapor no porto do Recife, no dia 10 de fevereiro do ano cristão de 1898 e levou 14 dias para chegar a Roma. Partiu “levando na bagagem 11.355 encomendas de missas, seis contos, setecentos e noventa mil e quatrocentos reis para doar ao tesouro de São Pedro, além de 22 contos de reis para pagar as despesas pessoais com a viagem”, anota Lira Neto.

 

 

O mais importante o padre levava consigo: um calhamaço de documentos “destinados a fazer prova de sua inocência diante do tribunal e assim recuperar suas prerrogativas de sacerdote”.

 

Arranchou-se numa hospedaria nas vizinhanças do rio Tibre, a pouco mais de um quilômetro de onde se erguiam as muralhas do Vaticano. Em breve ele se sentaria na mesma cadeira onde se sentara Giordano Bruno, para sair dali diretamente para a fogueira.

 

Para aquele mesmo lugar tinha ido Galileu, e este só não tivera o mesmo destino de Giordano, porque se retratou da afirmação de que a terra era redonda e não era o centro do universo. A Igreja mudou, reformulou conceitos, para arrepio dos que ainda hoje pregam a terra plana, são negacionistas, abominam as vacinas e orbitam na contramão da ciência e da razão.

 

O Vaticano ignorou o pedido de reconsideração do padre e manteve a condenação.

 

 

 

A VEZ DA ESPADA

 

 

De volta ao Juazeiro e destituído da batina (embora nunca a tenha deixado de usar), Cicero passou a investir em outro segmento: a política. Promoveu armistícios entre os coronéis da aristocracia sertaneja. Assessorado pelo médico baiano Floro Bartolomeu, formou um exército de jagunços para enfrentar os inimigos que enxergavam no Juazeiro um antro de ignorância e fanatismo. A cidade se tornava em pouco tempo um fenômeno de explosão populacional, donde podiam a qualquer momento pipocar movimentos rebeldes capitaneados por fanáticos, como acontecera em Canudos de memória recente.

Tropas federais de Franco Rabelo

O doutor Floro Bartolomeu, anota Lira Neto, pressentiu que fazer uma dobradinha com o padre Cícero era favas contadas para o sucesso na política. Então se fixou de vez no Juazeiro, fez a cabeça do padre e por muito tempo o manipulou, a ponto de, por diversas vezes, se passar por Cícero para responder os telegramas que o padre recebia.

 

Com as rédeas da política local nas mãos e um jornal para trombetear impropérios contra os desafetos, o doutor Floro rodou à baiana no Juazeiro, tudo isso com a anuência do padre Cícero.

 

Uma mistura de Chalaça e Rasputim, o doutor Floro deu régua e compasso para a construção do personagem mais importante do Juazeiro, exatamente para crescer à sombra dele. Embora destituído das ordens sacerdotais, Cícero nunca tirou a batina e, enquanto viveu, casou e batizou no Cariri do Ceará sem jamais perder o prestígio de coronel, santo e guia espiritual dos viventes dessa parte setentrional do Brasil.

 

Floro Bartolomeu

Um dos momentos mais hilários descritos por Lira Neto foi a solenidade de entrega da patente de capitão do Exército a Virgulino Ferreira que chegara ao Juazeiro com o seu bando para receber armas e dinheiro prometidos pelo padre para dar combate à Coluna Prestes.

 

 

Os revolucionários já tinham atravessado o Ceará em demanda de seu destino, e o padre comunicou ao bandoleiro a impossibilidade de cumprir a promessa no tocante ao dinheiro e às armas. Restava-lhe apenas, a título de consolo, a patente de capitão. Era pegar ou largar. Astuto, o padre convocou um funcionário federal do Ministério da Agricultura e armou o teatro para ludibriar a fera.

 

 

Por fim, Lampião recebeu com orgulho a folha de papel cuja “nomeação”, “validada” pelo carimbo da repartição e pela assinatura do funcionário, conferia-lhe a patente de capitão do Exército.

 

 

Segundo Lira Neto, este episódio deu-se numa pensão na periferia, no terceiro dia após a chegada do bando ao Juazeiro. Enganado miseravelmente pelo padre, o facínora passou a ser chamado de capitão Virgulino, e morreu se vangloriando da tal “patente”.

 

 

Veio a sedição de 1914 e com ela a derrubada do governo oligárquico de Franco Rabelo. A partir de então o Cariri do Ceará nunca mais seria o mesmo. O movimento armado partiu da cabeça de Cícero e contou com a participação efetiva do estrategista Floro Bartolomeu, além da boa vontade de milhares de romeiros dispostos a dar a vida pelo apóstolo do Sertão.

 

 

O padre venceu a guerra. Há descrições impressionantes a respeito de alguns fatos da sedição. Uma destes é o momento em que o major Ladislau, comandante das tropas federais, acossado pelos jagunços do Juazeiro, bateu em retirada para Barbalha.

 

 

Ao chegar naquela cidade cearense, relata Lira Neto que o major subiu numa calçada mais elevada e falou aos homens que o haviam acompanhado: “Camaradas, é triste confessar, mas o padre ganhou a guerra”.

 

 

Ao ouvirem aquelas palavras da boca do comandante, os soldados começaram a despir as fardas e as empilharem no chão. Ladislau deu-lhes o último conselho: “Deus é grande, padre Cícero é maior, mas o mato é maior ainda que os dois juntos. Cada um cuide de si e ganhe o matagal”.

 

BENS DO PADRE

 

 

Cícero morreu em 1934, aos 90 anos. Morreu rico. Seu testamento foi lavrado no cartório do doutor Luiz Teófilo Machado, tabelião de notas da comarca do Juazeiro.

 

 

Floro Bartolomeu foi eleito seu testamenteiro legal, para quem fora destinado 10 por cento do valor líquido de toda a herança. “A lista dos seus herdeiros, com os respectivos quinhões que cabia a cada um, era impressionante”, anota Lira Neto.

 

 

São quarteirões inteiros de prédios, prédios isolados, casas, terrenos ruas de casas, dezenas de sítios e fazendas espalhadas pelo Cariri, além de muito gado.

 

 

Consta em seu testamento três imóveis no Rio Grande do Norte e que foram doados à igreja de Nossa Senhora das Dores da cidade do Juazeiro. São eles os sítios Pititinga e Saco, em Touros, além do sítio Palmeira, em Ceará Mirim.

 

CNBB QUER CANONIZAÇÃO

 

 

Ainda em 2001, o cardeal Ratzinger, antes de se tornar Bento XVI, quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé deu início à revisão do processo do padre com vistas a sua possível canonização.

 

 

No ano de 2006, uma comitiva brasileira liderada pelo bispo do Crato chegou ao Vaticano com o propósito de acelerar a reabilitação do padre Cícero. Além de documentos religiosos e 150 mil assinaturas de populares em prol da canonização do padre, a comitiva jogou sobre a mesa de trabalho de Sua Santidade um abaixo assinado de 253 bispos brasileiros favoráveis à causa.

 

 

Por fim, no dia 14 de dezembro de 2015, durante a homilia, na catedral de Cariri, Dom Fernando Panico anuncia que o padre Cícero Romão Batista foi reabilitado pela Santa Sé das sansões impostas pela Igreja Católica de 1892 a 1916.

 

 

Em mensagem assinada pelo cardeal Pietro Parolim, secretário de Estado da Santa Sé, “se reconhece que a memória do padre Cícero lembra uma obra pastoral que pode ser considerada como um instrumento de evangelização popular”. Na sequência, em 2022 foi deflagrado o processo de beatificação, condição a que deve chegar o candidato para atingir a canonização e ser declarado santo.

 

DEZ ANOS DE PESQUISA

 

 

Em dez anos, o autor se valeu de uma rica e variada documentação, em especial a epistolar, além das informações extraídas de processos judiciais, livros de registros de paróquias e santas casas, jornais, livros, revistas, folhetos, além do testemunho de pessoas que se reportaram a fatos curiosos, reveladores e por vezes pitorescos em torno dessa figura controversa e até então conhecida apenas superficialmente do grande público.

 

 

De posse desse material, Lira Neto combinou virtudes que fazem o reconhecimento imediato de qualquer obra literária: o talento de escritor e a paciência de pesquisador com sabedoria para distinguir o essencial do supérfluo.

 

 

Senhor de um texto enxuto e prosa fluente, sem pedantismos nem os vícios da academia, Lira Neto é ágil, detalhista e cinematográfico. Sua história é a biografia de um homem que se tornou o santo milagreiro pela vontade do povo, refúgio espiritual de um rebanho de condenados que tira seu sustento a partir de um ambiente agrário castigado pelas secas, pelo regime feudal dos patrões coronéis e pela violência do cangaço.

 

 

O padre Cicero sofreu igualmente pelo resto da vida o peso de um castigo imposto pela instituição a quem tanto se dedicara. Em vida, nunca recuperou as prerrogativas de ministro de Deus e morreu sem saber que havia contra si um decreto de excomunhão.


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