BRASIL

Tarda, mas não falha? Entenda divergências na Justiça pós Lava Jato

Além de cega, a justiça tem seu tempo, mas, dizem, é infalível. Será mesmo? Os próprios juristas brasileiros debatem se a nossa justiça não está transgredindo direitos constitucionais em vista de se adaptar aos tempos de crise que vivemos.

Por Jhonattan Rodrigues

Passados 3 anos de operação Lava Jato, a mega operação da Polícia Federal, conduzida pela jurídica de Sérgio Moro já chega a 269 pessoas acusadas de 61 crimes e 29 condenações por crimes como corrupção, contra o sistema financeiro internacional, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Em um país cuja classe política é praticamente uma casta intocável, a Lava Jato se tornou para a população uma verdadeira guerra santa contra a impunidade e Moro, por sua vez, caiu aos olhos da população como um anjo vingador em caça contra os corruptos. Contudo, há quem considere a operação e Moro personagens de um teatro de marionetes forjados unicamente para perseguir o PT.

O fato é que, para o bem ou para o mal, a Lava Jato trouxe para os holofotes o meio jurídico. Uma seara que já há algum tempo tem sinalizado com decisões um tanto polêmicas, que dividem as opiniões dos próprios magistrados. Para alguns, os métodos escolhidos por Moro são manifestações de um pensamento jurídico que tem se tornado cada vez mais conservador. Para estes, a celeridade e a forma implacável de Moro tocar a operação Lava Jato seria indício de que o sistema jurídico brasileiro estaria entrando em um “estado de exceção”, onde para se atingir um objetivo, vale tudo, inclusive colocar de lado direitos constitucionais. Para outros – e o próprio Moro defende essa tese nas incontáveis palestras que deu ao longo da operação – vivemos tempos excepcionais e medidas da mesma altura devem ser adotadas.

Rômulo Palitot, Lava Jato usa meios previstos em lei

Vazamentos de informações, interceptações telefônicas presidenciais, conduções coercitivas e prisões preventivas em números nunca vistos, toda estas situações aconteceram na Lava Jato e dividem a opinião de juristas.

Para o jurista e Professor de Direito Penal da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Romulo Palitot, a Lava Jato está utilizando “certos instrumentos de forma mais permanente e às vezes até com exagero”, mas ele discorda que a operação esteja entrando em um estado de exceção. “Atacam, por exemplo, a Lava Jato pelo uso desmedido da condução coercitiva. É um meio legal, um meio plenamente previsto em lei. Agora, deve ser usado constantemente? Não. Só nos casos estritamente necessários, com bom senso, de forma criteriosa. Não se pode utilizar a condução coercitiva para achincalhar a imagem de uma pessoa. Isso jamais. O instituto da delação premiada da mesma forma. Não pode ser utilizada como um mecanismo de barganha, para atingir determinadas informações.”

Segundo Palitot, a comunidade jurídica está dividida “não só pelo aspecto jurídico, mas também pelo político”. Para ele a polaridade política pela qual passa o país não deixa de fora o judiciário, e os magistrados que tenham determinada orientação ideológica irão criticar seu oposto. “O que não pode acontecer nem de um lado nem de outro é o excesso, principalmente fazer um prejulgamento”, recomenda.

Apesar de ser um dos três poderes que sustentam a estrutura democrática nacional e ser um defensor da Constituição, as movimentações do Judiciário podem passar despercebido para a maioria da população. A NORDESTE selecionou algumas das principais mudanças e medidas que estão ocorrendo no âmbito judiciário e que estão dividindo a opinião dos juristas brasileiros, dentro e fora da Lava Jato. Confira nas páginas a seguir.

 

Medidas controversas

Entre temas que têm gerado polêmica está a Presunção de Inocência, a Inviolabilidade Domiciliar, Conduções Coercitivas e Delação Premiada. Todos são temas delicados e requerem um olhar atento para o que é exceção é o que é uma ferramenta jurídica válida no atual momento.

 

Presunção de inocência
No dia 17 fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou um pedido de habeas corpus, permitindo a prisão do réu em segunda instância. Até 2009 o Supremo entendia que o réu só poderia ser preso depois de recorrer a todas as instâncias, ou, antes disso, apenas por prisão preventiva. Em outubro do mesmo ano, o STF reiterou sua decisão, que passou a valer para todos os casos no país.

No entender dos ministros do STF (7 dos 11 magistrados foram a favor), a decisão de agilizar a condenação de réus minimiza situações de impunidade, como em casos onde o réu tem múltiplos recursos e consegue empurrar a condenação quase indefinidamente, fazendo com que os processos levem décadas, até que, enfim, os crimes prescrevem.

A decisão, para os ministros do STF que foram contra e para outros juristas, fere o direito constitucional do princípio da presunção de inocência – o bom e velho “inocente até prove em contrário”. Segundo a Constituição, a condenação definitiva de um réu só pode ser feita após o esgotamento de todos os recursos judiciais.

O problema desse entendimento do STF é que ele é benéfico para alguns casos, mas pode trazer problemas sérios para outros. Muito se fala em impunidade no país, mas o número de presos no Brasil chega a 600 mil – a quarta maior população carcerária do mundo. A decisão do STF pode aumentar ainda mais esse número.

Inviolabilidade domiciliar
O art. 5º, XI, da Constituição enuncia que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Entretanto, em novembro de 2015 o STF regulou a lei constitucional que atesta a inviolabilidade do lar. Ficou resolvido que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, (sic) que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

Para juristas esta medida pode abrir um precedente perigoso onde a polícia sob qualquer pretexto pode adentrar a casa dos cidadãos “mesmo em período noturno”, precisando apenas dar uma justificativa plausível para a ação. É notório, além disso, que a polícia brasileira tem precedentes em forjar provas de maneira a encobrir ações mais violentas e que pessoas mais pobres – na maioria das vezes afetadas por essas violências – tem pouca voz para se defender.

Conduções coercitivas
Uma das medidas mais usadas na Lava Jato é a condução coercitiva. Esse estatuto dá autoridade à força policial conduzir forçosamente, para prestação de depoimentos, indivíduos que sejam considerados partes importantes para o desenrolar de casos judiciais. O estatuto só é válido, entretanto, caso a pessoa já tenha sido chamada anteriormente e não comparecido.

Segundo Palitot, a condução coercitiva pode ser utilizada em alguns casos para ocasionar “uma certa surpresa, impedir que o conduzido venha a constituir de forma mais elaborada um raciocínio de defesa ou até mesmo apague alguns vestígios.” Ele ressalta, porém, que a Lava Jato pode ter “extrapolado o bom senso”. “Aí vem não só a ultrapassar a própria utilização do instituto como também a utilização de forma midiática, de um espetáculo que termina ocasionando um prejuízo para o conduzido que já é pelo menos condenado de forma antecipada pela própria população, trazendo prejuízo para a imagem daquela pessoa, que pode sequer ter um indiciamento, sequer ter uma denuncia, mas já tem um julgamento popular antecipado por causa da má utilização desse instituto”, explica.

Delação premiada
A delação premiada é um acordo firmado com o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) no qual o réu ou suspeito de cometer crimes se compromete a colaborar com as investigações e denunciar outros integrantes da organização criminosa em troca de benefícios. O delator é uma espécie de “réu colaborador”, que auxilia a justiça a desarticular um esquema criminoso investigado pela PF. Em geral os delatores recebem abrandamento da pena, o benefício da prisão domiciliar ou se limitam ao uso de tornozeleira eletrônica.

É uma possibilidade legal no Brasil desde 1995, porém veio a se tornar figura central apenas na Lava Jato, junto com outras medidas. Em 3 anos, das 87 pessoas condenadas na Lava Jato, 37 foram delatores. Em toda a investigação do mensalão, em comparação, apenas dois réus se tornaram delatores. Talvez porque a lei foi revista em 2013, se tornando mais abrangente em alguns sentidos, aceitando novos tipos de provas e conceituando o amplo sentido de ‘organização criminosa’.

O delator, é claro, tem que comprovar as acusações que faz, e que estas acusações são de alguma forma, válidas para a operação, ou pode ser responsabilizado penalmente por prática da pronunciação caluniosa.

Mas, se por um lado a delação é uma arma da justiça na busca por provas e no combate a corrupção, abre também espaço para que corruptos saiam impunes. Pode ser o caso, por exemplo, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da JBS, que gravaram conversas incriminatórias contra o senador Aécio Neves e o presidente Michel Temer. Em troca da chamada ‘delação do apocalipse’, os irmãos conseguiram um acordo onde ficam livres da prisão, de tornozeleiras eletrônicas e poderão viajar livremente para o exterior. Serão perdoados pelas acusações atuais e não serão alvo de novas acusações. A investigação evidenciou que a JBS, maior processadora de proteína animal do mundo, chegou ao seu lugar por meio de financiamento político e corrupção, em troca de concessões e benefícios. Para completar, a JBS comprou milhões em dólares pouco antes da delação, prevendo a queda no mercado financeiro diante da delação. Ou seja, tiraram proveito diante da própria delação.

 

A convicção, os fatos e as provas

O Domínio do Fato talvez seja entre as novas visões jurídicas a mais polêmica, mas também há ainda a Prisão Preventiva e novas leis que estão sendo criadas para, no entender de alguns, barrar a autoridade dos juízes, como a Lei de Abuso de Autoridade.

Prisão preventiva
A prisão preventiva é um recurso penal que pode ser utilizado para impedir que o réu continue a praticar ações criminosas, tente atrapalhar o andamento da investigação (destruindo provas, coagindo testemunhas), ou fuja. Até o momento, na Lava Jato, Moro decretou 94 prisões preventivas.

 

Prisão coercitiva de Lula

Alguns juristas, como os ministros do STF Celso de Mello, afirmou que prisão preventiva “não é um instrumento de antecipação punitiva”. O ministro ainda sugeriu que houvesse um prazo para o tempo máximo para detenção, como ocorre em outros países. Outros ministros do STF, Marco Aurélio e Gilmar Mendes partilham da mesma opinião e se colocaram contra a longa duração das prisões cautelares aplicadas por Moro. O contexto da crítica, entretanto, veio após um pedido de habeas corpus negado a Eduardo Cunha, que, sabe-se ainda exerce influência sobre o cenário político, mesmo preso.

Outro caso que gerou polêmica foi a prisão preventiva, de Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda de Dilma e Lula. Mantega foi preso na saída do hospital onde sua mulher, que sofre de câncer, estava em espera por uma cirurgia. Moro posteriormente revogou a prisão, afirmando que Mantega não oferecia riscos à “colheita das provas” e que nem PF, nem ele próprio, tinham conhecimento da situação da esposa do ex-ministro.

Como defesa do uso dessa medida, Moro afirma que os réus da Lava Jato representam “risco à ordem pública” e se defende dizendo que “embora as prisões cautelares decretadas no âmbito da Operação Lava Jato recebam pontualmente críticas, o fato é que, se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso”. O jurista mantém o discurso apresentado nas diversas palestras que comumente participa, de que as prisões são “excepcionais”, mas que a Lava Jato em si é um caso “excepcional”.

Domínio do fato
A teoria do Domínio do Fato indica que uma pessoa que é mandante de um crime é também seu autor, e não mero cúmplice. Desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin há mais de 40 anos, a teoria já foi utilizada em todo mundo em diversas situações. No Brasil foi utilizada pela primeira vez no âmbito das investigações do Mensalão do governo Lula, em 2006. O relator do processo, Joaquim Barbosa, usou a tese para condenar ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu. Os juristas alegaram que todos os indícios levavam a crer que Dirceu seria mandante dos crimes de corrupção, apesar de contarem apenas com provas indiretas e com base no cruzamento de depoimentos de pessoas ligadas a Dirceu.

Os únicos magistrados que se colocaram contra o uso do Domínio do fato foram Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, alegando que a teoria estaria sendo “banalizada” e que a condenação sem provas diretas estaria ferindo o princípio da presunção de inocência. O próprio Claus Roxin, anos mais tarde, em uma palestra no Brasil, afirmou que a teoria estava sendo mal interpretada, e que é preciso provas para uma condenação, não apenas indícios. Segundo Roxin, a tese só poderia ser aplicada em organizações que atuem fora da lei.

A utilização da teoria do Domínio do Fato viria gerar polêmica novamente no início deste ano, quando da detenção do militante do Movimento Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, durante a reintegração de posse de dois terrenos em São Paulo. Após manifestantes entrarem em confronto com a polícia, Boulos, que havia sido chamado ali para ajudar nas negociações com os oficiais de justiça, foi detido sob alegação de “ter fortes influências” sobre os manifestantes. No auto de prisão redigido pelo delegado responsável constava a teoria do Domínio do Fato, e afirmava que Boulos poderia “ao menos ter minorado a reação dos manifestantes contra os agentes do Estado”, e que “muito embora não seja o líder” da ocupação, este exercia influência por ser reconhecido “atuante ativista das causas sociais”.

Fim do foro privilegiado
Segundo a revista Congresso em Foco, Desde 1988, mais de 500 parlamentares passaram pelo julgamento do STF por crimes como corrupção, desvio de verba pública e lavagem de dinheiro, mas apenas em 2010 houve a primeira condenação e, desde então, apenas outros 16 foram condenados.

Juristas defendem mudanças no regime de foro privilegiado, para desafogar o Supremo. A lentidão do Supremo em seus julgamentos decorre de sua própria natureza, que é julgar casos complexos à luz da Constituição. Como os processos são avaliados em conjunto, e só encerrado após o voto de todos, dá-se a demora de seus desfechos.

O foro é importante para evitar perseguições políticas contra autoridades assim como pressões de investigados poderosos sobre juízes de primeiro grau. No entanto, dizem, há pessoas demais com foro no Brasil e isso deveria ser reduzido. Segundo a PGR, desde o início da Lava Jato, 413 pessoas com foro privilegiado já foram parar no STF.

Lei do abuso de autoridade
Tramita na Câmara um projeto de lei de autoria do senador Roberto Requião que altera a atual Lei de Abuso à Autoridade. O projeto prevê mais de 30 ações que podem ser consideradas abuso de autoridade, com penas que variam entre seis meses e quatro anos de prisão. Além disso, as autoridades condenadas terão que indenizar a vítima. Em caso de reincidência, também pode haver a inabilitação para exercício da função pública por um a cinco anos e até mesmo a perda do cargo. Requião afirmou que “este projeto é o maior avanço do garantismo jurídico em décadas no Brasil” e que garante “investigações limpas”. O senador afirmou ainda que juízes brasileiros têm qualidade e são “tão bons e tão ruins quanto os membros do Congresso”.

Entre as medidas propostas por Requião a serem tipificadas como abuso de autoridade estão: obter provas por meios ilícitos; entrar em imóvel alheio sem determinação judicial; impedir encontro reservado entre um preso e seu advogado; decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem intimação prévia; fotografar ou filmar um preso sem o seu consentimento ou para expô-lo a vexame; colocar algemas no detido quando não houver resistência à prisão; e ainda punição para a popular carteirada, quando uma autoridade usa de seu cargo para obter alguma vantagem.

Alguns parlamentares se colocaram contra o projeto, acreditando que este impõem obstáculos às ações dos juristas e tem finalidade de atrapalhar a Lava Jato. É o caso do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que chegou a afirmar que a aprovação do projeto, ironicamente, seria um abuso de autoridade.
O projeto já passou pelo Plenário do Senado e agora segue para a Câmara dos Deputados.

 

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